A história da Jornada de Cinema da Bahia
Entrevista com Guido Araújo
Oficina Cinema-História - Como surgiu a Jornada de Cinema da Bahia?
Guido Araújo - Quando regressei da Europa, em 1967, após ter morado e estudado na Tchecoslováquia desde 1959, fui procurado, juntamente com o Walter da Silveira, por duas pessoas da Universidade Federal da Bahia: o Nelson Araújo e o Romélio Aquino, no sentido de criarmos algo na área de cinema. Naquela época, a Universidade tinha apenas um departamento cultural. No início de 1968, criamos o chamado Grupo Experimental de Cinema, que era fundamentalmente um curso livre de cinema, ministrado por nós dois. O Walter cuidava das aulas teóricas e históricas e eu das aulas práticas. Esse Grupo despertou grande interesse.
A primeira turma foi enorme, demonstrando o desejo da juventude baiana e dos artistas, de um modo geral, de realizar algo nesse sentido. Foi extremamente agradável aquele convívio, num ano atípico e transitório. Já estávamos sob a ditadura, mas naquela fase de movimentos, que foi 1968.
Através do Grupo, passamos a desenvolver as atividades de cine-clube na Reitoria da UFBA. Na época, o reitor era o Roberto Santos. Fomos conversar com ele. Ele nos disse que concordava que realizássemos as atividades e que ele nem levaria para a aprovação do Conselho para que não surgisse nenhum problema.
Demos início, então, às atividades, fazendo, sempre aos sábados, a projeção de um bom filme. Foi um sucesso incrível. Cada exibição contava com a presença de 600 a 700 pessoas. Isso, nós fizemos durante todo o ano de 1968. O ICBA nos emprestava os projetores e nós providenciávamos o filme.
Eu e o Walter fazíamos pequenos folhetos informativos, distribuíamos e exibíamos o filme. Em dezembro de 1968, veio o fatídico AI-5. Mesmo antes, numas das últimas exibições que realizamos já havíamos tido problemas.
Durante a exibição de Os Companheiros, com a Reitoria superlotada, ocorreu uma manifestação lá dentro. Tive que me esconder porque disseram que a polícia estava a minha procura. Como era final de ano, período de férias, suspendemos as atividades. No ano seguinte, quando nos preparamos para reiniciá-las, sentíamos que havia uma grande resistência.
Realizamos apenas duas ou três sessões.
Um dia, aproveitando que o Roberto Santos estava no exterior, eles proibiram as exibições, com uma alegação meio cretina: diziam que havia desaparecido um aparelho de telefone da portaria e que deveria ter sido alguém da sessão de cinema. Na verdade, a partir do AI-5, qualquer evento que concentrasse pessoas, sobretudo jovens e, particularmente, estudantes, era visto como subversivo. Começamos a pensar numa alternativa. Surgiu a idéia de fazer algo que não desse problemas com a polícia: fazer uma retrospectiva dos dez anos de cinema baiano de longa-metragem. Fizemos no Cine Bahia, no turno matutino, que era o período disponível.
Foi interessante, porque aglutinou pessoas de cinema da Bahia, até mesmo alguns que estavam desligados, a exemplo do Rex Schinddler e do Braga Neto. Fizemos a retrospectiva e daí surgiu o desejo de dar continuidade ao trabalho. Ao mesmo tempo, ainda realizávamos o curso.
Nesse ínterim, sobreveio, em 1970, a morte de Walter da Silveira, e eu fiquei praticamente sozinho, carregando o fardo. No mesmo dia em que Walter morreu, 5 de novembro, Dia da Cultura, estava sendo inaugurada a Biblioteca Central dos Barris, obra de Luís Viana Filho, que ordenou que a inauguração deveria se realizar de qualquer jeito. A professora Adalgisa Aragão, primeira diretora da Biblioteca, através de Jamison Pedra Prazeres, me convidou para participar da inauguração.
Eu tinha duas exposições e as coloquei lá no saguão: uma sobre Kafka e a outra sobre as crianças tchecas. E foi só o que havia, além das placas. Fechou assim que foi inaugurada porque não havia, de fato, sido concluída. Abriu apenas no mês de março de 1971. Então, o Jamison me convidou para dar um curso lá.
A Biblioteca tinha um auditório e um projetor. Eu fui dar o curso e fazia, assim, exibições de clássicos do cinema para os alunos. Quando o curso acabou, Adalgisa me propôs continuar exibindo filmes, mas havia os problemas dos custos.
Influenciado por pessoas que haviam pertencido à última diretoria do Clube de Cinema, como Ronilda Noblat e Ney Negrão, resolvi reativar o Clube criado por Walter da Silveira em 1950, um dos mais antigos do Brasil. Começamos a fazer exibições na Biblioteca Central, mas, com o período de chuvas, ficou tudo alagado.
Na Bahia, existiam dois grandes exibidores: o Francisco Pitton e Calumbi. Junto ao Calumbi, trabalhava o Adálio Valverde, que era seu sócio. Conversando com eles, surgiu a oportunidade de utilizar o Cine Rio Vermelho, às sextas-feiras, para as sessões do clube. Isso ocorreu em 1971 e foi um sucesso.
Nesse período, numa viagem que fiz para o Rio de janeiro, conheci Roland Schaffner, cuja vinda para a Bahia, com a finalidade de dirigir o Instituto Cultural Brasil Alemanha local, já estava planejada.
Através do Cosme Alves Netto, da cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), ele soube da minha presença no Rio e manifestou o interesse de manter contato. Ele queria duas coisas: me conhecer e trazer a mostra de dez anos do Festival de Obenhausen para a Bahia. Trouxemos essa mostra e a apresentamos no Cine Rio Vermelho.
Juntando a retrospectiva que eu havia feito com essa mostra, sedimentou-se a idéia de criar a Jornada.
Em janeiro de 1972, eu fiz a I Jornada Baiana de Cinema. Era um momento difícil da situação política.
Foi modesta. Não tínhamos recursos, mas foi bastante positiva porque aglutinou pessoas que estavam querendo fazer cinema por aqui. Eu trouxe poucas pessoas de fora, pessoas-chave, com o mesmo pensamento. A maior parte da Jornada foi realizada na Biblioteca Central dos Barris e alguma coisa feita no ICBA.
OC-H - Você acredita que a Jornada teve alguma espécie de papel aglutinador da cultura de resistência à ditadura?
GA - Sim, ela teve. Não tanto nessa primeira, porque ela foi muito modesta. Mas isso ficará mais caracterizado a partir da segunda.
Denominei a primeira de Jornada Baiana de Curta-metragem. Nela, fiz um concurso apenas para produções baianas, uma pequena mostra de filmes, que continham uma certa visão crítica, como Vestibular 70, de Vladimir Carvalho, por exemplo, e um simpósio de discussão de problemas do cinema, especialmente, no Brasil.
Na noite do encerramento da Jornada de 1972, o Schaffner me convidou para comemorar sua chegada à Bahia. Ele e o Cosme me disseram: olhe, se você quiser continuar com a idéia de fazer a Jornada no próximo ano, pode contar com o nosso apoio. O Schaffner ofereceu o espaço e o Cosme auxiliou no sentido de conseguir filmes no Sul do país.
Partimos para uma Jornada nordestina, em 1973. Ela teve uma importância cinematográfica e política extraordinária. Naquela época, toda a atividade cinematográfica do país havia sido esmagada, quer dizer, o movimento cineclubista tinha sido totalmente aniquilado pela ditadura. Não havia sequer um clube de cinema funcionando no país.
Existia um desejo de ir contra a situação política, mas, naquela época, as coisas eram barra pesada! A repressão era violentíssima dentro das universidades, dos colégios e era muito difícil se fazer alguma coisa
.
O ICBA, como uma instituição alemã, gozava de certa imunidade diplomática. Isso nos permitiu a audácia de fazer coisas, lógico, graças ao apoio do diretor e também ao fato da Alemanha, no período, ter um governo social-democrata mais liberal, que lhe dava respaldo.
Essa Jornada, além de aparecerem muitos bons filmes, ficou marcada também pelo surgimento dos filmes em super 8. Foi o início da retomada do movimento cineclubista que se concretizaria depois de uma jornada específica de cineclubes que organizamos em Curitiba. Decidimos realizar a Jornada baiana em setembro, período de baixa estação e em que poderíamos contar com o apoio da Bahiatursa no que concerne às negociações com os hotéis. E até hoje, ela se realiza em setembro.
Do ponto de vista político, sobretudo a partir desse momento, 1973, a Jornada adquiriu um papel político muito intenso, aglutinando o movimento cinematográfico brasileiro, através da retomada dos cineclubes e também da organização de uma associação de classe dos cineastas. Surge aí o embrião da Associação Brasileira Documentarista, concretizada no ano seguinte.
A Jornada foi o momento que aproveitamos também, devido à posição privilegiada do ICBA, para exibir filmes que, naquela época, não poderiam ser vistos em outro lugar. Tivemos alguns problemas, é claro. Alguns filmes foram apreendidos, houve ameaças de intervenção e suspensão da Jornada.
Queriam que os filmes fossem liberados pela censura previamente, mas conseguimos, finalmente, contornar todos os problemas e exibir, pela primeira vez, por exemplo, filmes cubanos e películas que mostravam a luta de independência dos povos africanos.
OC-H - Que transformações ocorreram na natureza política da Jornada com o fim da ditadura e o processo de abertura que veio em seguida?
GA - Por incrível que pareça, não mudou muita coisa, porque a Jornada sempre se caracterizou por ser um movimento de resistência, um espaço independente, descompromissado e voltado para o cinema.
Quer dizer, ela não tem nada a ver com o cinema tradicional hollywoodiano. O que aconteceu na época da ditadura é que nós tínhamos o problema das ameaças, da censura.
A Jornada também enfrentou sempre dificuldades financeiras, por conta do seu caráter. Mas, por mais paradoxal que pareça, com a abertura, as coisas pioraram muito.
Durante o governo de Geisel e de Figueiredo, a Jornada contava com maiores recursos.
A Jornada nunca foi bem vista porque ela nunca se colocou do lado do poder, seja no nível empresarial, seja no governamental.
O único ano em que contei com o apoio de empresas privadas foi 1985, quando a Jornada tornou-se internacional. Isso só ocorreu porque nesse ano, com o surgimento do Ministério da Cultura, tivemos a presença do Ministro na Jornada. Mas foi um ano excepcional, nos seguintes a situação voltou a se tornar complicada.
OC-H - E para a Jornada de 1995, quanto você recebeu?
GA - Para essa Jornada, recebi 75 mil reais. Uma miséria, em se tratando de um evento internacional. Sessenta mil foram dados pelo Ministério da Cultura e os 15 mil restantes pela Fundação Cultural.
OC-H - Você considera que essa última Jornada marcou algum passo importante, além da sua consolidação como evento internacional?
Acho que ela marcou sim e em vários sentidos. Os próximos é que confirmarão isso. Logo no início do ano, eu estava lendo uma publicação francesa, quando tive a idéia de juntar os cem anos de cinema, de psicanálise e do raio X. Percebi que a Bahia tinha condições de sediar um evento desse tipo. Infelizmente, não encontrei apoio das pessoas que poderiam dispor de recursos para realizar esse sonho.
Mas, pelo menos, consegui realizar a Jornada no espaço que havia previsto inicialmente: no Memorial de Medicina. As pessoas que acompanharam esse trabalho sabem que o projeto inicial era outro.
Seria algo realmente grandioso e nem seria muito caro. Custaria aproximadamente 90 mil reais. Mas, mesmo com todas as dificuldades, a Jornada foi mais uma vez realizada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
COMENTE AQUI SOBRE ESSA POSTAGEM!