Por Beto Magno
A história no cinema, ou seja, os filmes enquanto fonte histórica e meio de representação da história teve em Marc Ferro sua primeira e principal referência mundial. Em sua obra “Cinema e História”, o autor formulou a definição de duas vias de leitura do cinema acessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme (que corresponde a uma leitura do momento presente em que este foi produzido ) e uma leitura cinematográfica da história que seria a utilização dos filmes para uma leitura da história.(FERRO, 1992).Ao analisar a recusa de historiadores contemporâneos em recorrer aos filmes como documento, Ferro diz tratar-se de uma recusa inconsciente, que procede de causas mais complexas. Seria necessário, segundo o historiador francês, fazer o exame de quais “monumentos do passado” o historiador transformou em documentos para, em seguida,buscar perceber que documentos, hoje, a história transforma em monumentos.A partir da década de 1970, sob influência da Escola dos Annales, na França, que desencadeou um processo de reformulação do conceito e métodos da história, o filme passa a representar um testemunho de seu tempo e ganha o status de documento histórico.
Com o filme ganhando status de documento histórico, algumas obras começam a surgir buscando debater o modo de operar com esta nova fonte. (LE GOFF & NORA, 1979). Siegfried Kracauer com a obra “Teoria do Filme”, publicada em 1960, é um dos primeiros a habilitar-se a colaborar.Baseando sua construção teórica numa visão realista do cinema, já em seu prefácio, o autor afirma que sua teoria seria uma estética material baseada na prioridade do conteúdo.Para este autor, toda arte é uma batalha entre a forma e o conteúdo, sendo que, no cinema, o conteúdo teria vantagem sobre a forma. Esta certeza impulsionou a Kracauer contemplar, com um capítulo em sua obra, a análise dos conteúdos cinemáticos de vários filmes. A obra do teórico alemão notabiliza-se por levantar uma questão crucial na análise documental de um filme: o realismo das películas.
Para Kracauer, a forma cinematográfica ideal seria aquela que conseguisse o equilíbrio entre o documentário, que tenta seguir o impetuoso fluxo da natureza, e o filme de enredo, que se esforça para dar à natureza uma forma humana. A síntese dessas duas antíteses foi estabelecida por Kracauer com o que ele chamou de “enredo encontrado”. Exemplos de “enredos encontrados” são os filmes do neo-realismo italiano cujas histórias nascem do local e da cultura filmados; neles, nunca um indivíduo inicia uma trama, pois a trama deve vir da própria realidade. Mesmo passível de críticas, a obra de Kracauer fez emergir de forma vigorosa a relação cinema e história. (BAZIN, 1991) Caminhando na mesma linha de interpretações, encontra-se o americano Robert Rosenstone, cuja grande preocupação é interrogar-se sobre as possibilidades do discurso histórico escrito, transformar-se em um discurso visual. Faz uma crítica indireta a Kracauer,quando afirma que não são o excesso de ficção ou a falta de rigor as duas maiores transgressões do cinema à concepção tradicional de história.
Para o historiador o grande problema situa-se na tendência do cinema a comprimir o passado e convertê-lo em algo fechado, mediante uma explicação linear, uma interpretação exclusiva de uma única concatenação de acontecimentos. (ROSENSTONE, 1998).O próprio Rosenstone nos apresenta a posição de dois teóricos, cujas leituras divergem, no que concerne a este possível reducionismo do documento fílmico. O historiador R. J. Raack defende a tese de que as imagens são mais apropriadas para explicara história do que as palavras. Para ele, a história escrita convencional é tão linear e limitada que é incapaz de mostrar o complexo e multidimensional mundo dos seres humanos, capacidade só atribuída às películas. Posição oposta à de Raack defende o filósofo Jan Jarvier, já que para ele as imagens só podem “transmitir muito pouca informação” e padecem de tal “debilidade discursiva” que é impossível transpor algum tema histórico na tela.Diante das controvérsias, Rosenstone centra seus argumentos conclusivos sobre a necessidade de aprofundar-se no entendimento da linguagem e nos códigos específicos do cinema no intuito de desenvolver uma leitura mais adequada das capacidades do meio audiovisual, para informar, justapor imagens e palavras e criar estruturas analíticas visuais.À luz destas necessidades de entendimento de códigos e estruturas analíticas visuais, Jean-Claude Bernardet aproxima o cinema da história ao contemplar, com um capítulo de sua obra “Piranhas no Mar de Rosas” a análise de alguns filmes de temática histórica.O autor, em texto introdutório, posiciona-se contrário a uma parte da crítica especializada que defende, segundo ele, uma estética “naturalista” dos filmes históricos,exigindo deles uma reconstituição de fatos e figurinos que se aproximem o máximo da“verdade histórica”.No momento em que estes críticos exigem verossimilhança excessiva da reconstituição histórica nos filmes, estão tomando uma atitude puramente ideológica,pois querem ter para si o domínio da história, pois, ao dominar a história dominam o presente, “já que a história é sempre uma interpretação do presente”.(BERNARDET,1982).
O argumento de Bernardet perde consistência, entretanto, no momento em que, ao defender uma liberdade estética e interpretativa dos fatos históricos no cinema este não deixa claro o conceito de história que se passa nas telas. Ao acusar os críticos de imporem uma visão única de história, ele próprio não caracteriza que visão histórica defende. Faltam-lhe neste momento a responsabilidade e o embasamento teórico de um historiador. Ainda referindo-se ao cinema como documento e à constituição de uma época no conteúdo deste documento, Jean-Louis Leutrat,(1995) admite que a discrepância temporal entre a época representada e a que produz esta representação não proíbe que relações de contrastes ou analogias se estabeleçam entre elas,Para o autor, a própria reconstituição, os figurinos, por exemplo, se opera com freqüência a partir de representações da época tomadas como imagem fiel de uma realidade . Mesmo dentro de uma reconstituição, Leutrat reconhece a presença de invenção.
O teórico francês mostra-se categórico quanto ao seu pessimismo com o cinema como documento ao afirmar que a imagem no cinema não exibe senão desajustes. Ao concluir, sustenta a tese de que o filme se apresenta raramente como um discurso de sabedoria, mesmo se ele pode produzir efeitos de sabedoria. E, quando se torna auxiliar de uma ciência, pede que seja acompanhado de um comentário. (JOLY, 1999).
O filme “Barravento” de Glauber Rocha é um exemplo típico de como se pode representar leituras divergentes de um mesmo fato. Ismail Xavier, em obra escrita em 1983, inaugura uma nova tese de análise sobre Barravento. De modo geral, antes de Xavier, o primeiro longa metragem de Glauber Rocha representava um claro e inequívoco discurso contra a religiosidade africana. Xavier propõe uma revisão desta tese, optando pela renúncia do enredo como eixo do discurso fílmico e centrando sua argumentação numa leitura específica sobre a imagem e o som da película. (XAVIER, 1993).O livro de Xavier analisa quatro filmes: dois de Glauber e dois que ele considere representativos do Cinema Não Novo brasileiro. O capítulo, que se refere a “Barravento”, é construído para provar que houve por parte de Glauber uma ambigüidade de ponto de vista que se alternou entre uma aceitação poética da cultura popular representada pelo candomblé uma denuncia da religiosidade como fator de alienação de um povo. Ao dar ênfase na análise da imagem e do som, Xavier abre possibilidades especulativas e dúbias no discurso do diretor baiano. Renato da Silveira, em texto escrito em 1998, desconstrói a tese de Xavier, afirmando que não há rigorosamente nada em “Barravento”, que não possa encontrar “lógica”, “ científica”.
Ainda, segundo ele, um certo deslumbramento com o exótico impede que isso fique claro. Ao contrário de Xavier, Silveira ocupa-se do texto escrito do enredo como eixo do discurso fílmico. Apesar de não descartar a análise das outras linguagens que compõem um filme como a imagem e o som, percebe que, no caso especifico de “Barravento”, o texto é o elemento essencial na caracterização de um discurso único e logicamente construído pelo diretor.Para construir sua tese, e conseqüentemente mostrar o equívoco cometido pór Xavier, substancia seu trabalho com uma caracterização do contexto ideológico do início da década de 60 e a influência deste contexto na formação intelectual do jovem Glauber Rocha.Faz uma analogia intelectual entre teoria e prática na obra de Glauber, fazendo emergir uma relação direta e inequívoca dos pressupostos teóricos do cineasta e o resultado final do discurso fílmico de Barravento. O texto de Renato da Silveira conclui por uma afirmação do filme como um manifesto político contrário à alienação popular causada pelo candomblé.
Ao fazer uma análise da presença da religião afro brasileira nos filmes brasileiros, Robert Stam (1997) aproxima-se da discussão em torno de “Barravento”. A posição do autor toma uma direção conciliatória entre a de Xavier e a de Silveira.Sua análise leva em conta tanto a abordagem materialista quanto a poética. Mostrando-se minucioso pesquisador, dá a devida importância aos assuntos de bastidores que envolveram a produção de Barravento. Embasaram seu texto, a formação religiosa dos principais envolvidos na produção, o grau de envolvimento destes mesmos personagens com o candomblé, a formação intelectual de Glauber Rocha, e o conflito histórico da produção representado pela exclusão de Luis Paulino dos Santos à frente da direção do filme.
Todos esses fatos levaram Stam a concluir que o objetivo de Glauber Rocha, com “Barravento”, foi mostrar que sob o exotismo e a beleza decorativa do misticismo afro brasileiro existia a fome, o analfabetismo e a miséria. Entretanto, em certo momento, o historiador americano acaba sucumbindo às suas limitações conclusivas do tema, ao afirmar que até certo ponto o filme é uma equação ir resolvível. Antonio Costa escreveu uma espécie de manual cinematográfico cujo principal objetivo foi facilitar a compreensão do complexo mundo que envolve o cinema. Sua obra busca, ao mesmo tempo, teorizar e historiar os fatos ligados ao cinema desde sua criação. (COSTA, 1987).
No primeiro capítulo cujo título é “O que é cinema?” trabalha com as diversas formas de abordar o cinema, contemplando neste conteúdo a história do cinema.A principal dificuldade do historiador do cinema é a de unificar, em uma única perspectiva,um fenômeno tão complexo com vários objetos de pesquisa que, embora separados devam estar coesos. Costa atribui a uma estruturação de tipo abrangente e comparativo o método correto para se atingir o êxito das histórias gerais do cinema. Jean-Louis Leutrat, em obra já citada, faz uma aproximação entre história e antropologia. Partindo da idéia de que o espaço é a matéria da antropologia e o tempo a matéria – prima da história, é possível entrecruzar as duas ciências a fim de fazer do cinema um domínio em que ambas ciências enriqueçam o conhecimento do objeto.Um projeto de história do cinema poderia ser o de reconhecer a maneira pela qual os atores sociais revestem de sentido as suas práticas e os seus discursos.
Em contribuição a uma história do cinema de forma abrangente, Walter da Silveira vai escrever “A História do Cinema Vista da Província”. Escrito sob o ponto de vista de quem viveu os melhores momentos do cinema baiano, o texto está, baseado em farta documentação, traça um panorama do cinema na Bahia e no Brasil na primeira metade do século XX. (SILVEIRA, 1978).
Organizada em forma de tópicos curtos, a obra de Walter, apesar de ser fiel a uma coerência cronológica, afasta-se da linearidade, demonstrando a dificuldade do historiador do cinema em contracenar sua história no tempo e no espaço. A opção por um texto basicamente informativo é fruto da dificuldade de unificação, levantada por Costa, dos vários objetos que compõem a história do cinema. Mesmo distanciando-se de certos rigores historiográficos, o livro de Walter da Silveira é essencial para o conhecimento do cinema baiano e brasileiro. Raimundo Nonato Fonseca (2000), em dissertação de mestrado defendida recentemente, aborda o cinema como eixo temático na construção de uma historia social da Bahia nas três primeiras décadas do século XX.
O trabalho de Nonato insere o lazer,representado através do cinema, como campo de estudo histórico do cotidiano baiano.Recorrendo a jornais como principal fonte de pesquisa, a tese em questão retrata, os costumes, hábitos e valores do baiano. Ao retratar o cotidiano do baiano, Fonseca objetiva perceber o sistema de trocas e incorporação cultural, ocorrido na cidade, entre o cinema e o povo da Bahia.A pesquisa de Fonseca ganha importância dentro da historiografia específica por servir de exemplo de abordagem por parte do objeto cinema numa perspectiva de cunho cultural.
Os textos abordados demonstram o quanto a relação cinema e história mostra-se embrionária em termos de conceitualização metodológica. As posições persistem contraditórias, mas convergem, de modo geral, quanto à utilização do cinema, seja como instrumento de um discurso ou como documento histórico. O uso do cinema como documento, entretanto, precede, por parte do historiador, um domínio das representações que caracterizam a linguagem cinematográfica. Cabe, portanto, ao historiador contemporâneo investir em sua capacitação interpretativa desta linguagem e apoderar-se do cinema de forma proveitosa como mais uma ferramenta no processo de produção historiográfica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991.BERNARDERT, J. C. Piranha no Mar de Rosas. São Paulo: Nobel, 1982.COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Rio de Janeiro: Globo, 1987.FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.JARVIE, I. C. Ver através dos filmes: Filosofia das Ciências Sociais. n. 8., 1978, p.378.JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Campinas: Papirus, 1999.KRACAUER, Siegfried. Theory of film: The Redemption of Physical Reality. Nova York: Oxford University Press, 1960.LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. (Orgs). “História: Novos Problemas”. In: A NovaHistória. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.LEUTRAT, Jean-Louis. Uma Relação de diversos andares: Cinema e História. Revista Imagens, n. 5, ago/dez 1995, p. 28-33.RAACK, R, J. Historiography as cinematography: a prolegomenon to filme work for historians. Journal of Contemporary History, n. 18, 1993, p. 416-18.STAM, Robert. Tropical multiculturalism: A Comparative HistorY of Race in Brazilian Cinema and cultura. London: Duke University Press, 1997.SILVEIRA, Renato. O Jovem Glauber e a Ira do Orixá. Seção Textos, n. 39, set/nov de1998, p. 88-115.XAVIER, Ismail. Sertão Mar, Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo:Brasiliense/ Embrafilme/MEC, 1993.
A história no cinema, ou seja, os filmes enquanto fonte histórica e meio de representação da história teve em Marc Ferro sua primeira e principal referência mundial. Em sua obra “Cinema e História”, o autor formulou a definição de duas vias de leitura do cinema acessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme (que corresponde a uma leitura do momento presente em que este foi produzido ) e uma leitura cinematográfica da história que seria a utilização dos filmes para uma leitura da história.(FERRO, 1992).Ao analisar a recusa de historiadores contemporâneos em recorrer aos filmes como documento, Ferro diz tratar-se de uma recusa inconsciente, que procede de causas mais complexas. Seria necessário, segundo o historiador francês, fazer o exame de quais “monumentos do passado” o historiador transformou em documentos para, em seguida,buscar perceber que documentos, hoje, a história transforma em monumentos.A partir da década de 1970, sob influência da Escola dos Annales, na França, que desencadeou um processo de reformulação do conceito e métodos da história, o filme passa a representar um testemunho de seu tempo e ganha o status de documento histórico.
Com o filme ganhando status de documento histórico, algumas obras começam a surgir buscando debater o modo de operar com esta nova fonte. (LE GOFF & NORA, 1979). Siegfried Kracauer com a obra “Teoria do Filme”, publicada em 1960, é um dos primeiros a habilitar-se a colaborar.Baseando sua construção teórica numa visão realista do cinema, já em seu prefácio, o autor afirma que sua teoria seria uma estética material baseada na prioridade do conteúdo.Para este autor, toda arte é uma batalha entre a forma e o conteúdo, sendo que, no cinema, o conteúdo teria vantagem sobre a forma. Esta certeza impulsionou a Kracauer contemplar, com um capítulo em sua obra, a análise dos conteúdos cinemáticos de vários filmes. A obra do teórico alemão notabiliza-se por levantar uma questão crucial na análise documental de um filme: o realismo das películas.
Para Kracauer, a forma cinematográfica ideal seria aquela que conseguisse o equilíbrio entre o documentário, que tenta seguir o impetuoso fluxo da natureza, e o filme de enredo, que se esforça para dar à natureza uma forma humana. A síntese dessas duas antíteses foi estabelecida por Kracauer com o que ele chamou de “enredo encontrado”. Exemplos de “enredos encontrados” são os filmes do neo-realismo italiano cujas histórias nascem do local e da cultura filmados; neles, nunca um indivíduo inicia uma trama, pois a trama deve vir da própria realidade. Mesmo passível de críticas, a obra de Kracauer fez emergir de forma vigorosa a relação cinema e história. (BAZIN, 1991) Caminhando na mesma linha de interpretações, encontra-se o americano Robert Rosenstone, cuja grande preocupação é interrogar-se sobre as possibilidades do discurso histórico escrito, transformar-se em um discurso visual. Faz uma crítica indireta a Kracauer,quando afirma que não são o excesso de ficção ou a falta de rigor as duas maiores transgressões do cinema à concepção tradicional de história.
Para o historiador o grande problema situa-se na tendência do cinema a comprimir o passado e convertê-lo em algo fechado, mediante uma explicação linear, uma interpretação exclusiva de uma única concatenação de acontecimentos. (ROSENSTONE, 1998).O próprio Rosenstone nos apresenta a posição de dois teóricos, cujas leituras divergem, no que concerne a este possível reducionismo do documento fílmico. O historiador R. J. Raack defende a tese de que as imagens são mais apropriadas para explicara história do que as palavras. Para ele, a história escrita convencional é tão linear e limitada que é incapaz de mostrar o complexo e multidimensional mundo dos seres humanos, capacidade só atribuída às películas. Posição oposta à de Raack defende o filósofo Jan Jarvier, já que para ele as imagens só podem “transmitir muito pouca informação” e padecem de tal “debilidade discursiva” que é impossível transpor algum tema histórico na tela.Diante das controvérsias, Rosenstone centra seus argumentos conclusivos sobre a necessidade de aprofundar-se no entendimento da linguagem e nos códigos específicos do cinema no intuito de desenvolver uma leitura mais adequada das capacidades do meio audiovisual, para informar, justapor imagens e palavras e criar estruturas analíticas visuais.À luz destas necessidades de entendimento de códigos e estruturas analíticas visuais, Jean-Claude Bernardet aproxima o cinema da história ao contemplar, com um capítulo de sua obra “Piranhas no Mar de Rosas” a análise de alguns filmes de temática histórica.O autor, em texto introdutório, posiciona-se contrário a uma parte da crítica especializada que defende, segundo ele, uma estética “naturalista” dos filmes históricos,exigindo deles uma reconstituição de fatos e figurinos que se aproximem o máximo da“verdade histórica”.No momento em que estes críticos exigem verossimilhança excessiva da reconstituição histórica nos filmes, estão tomando uma atitude puramente ideológica,pois querem ter para si o domínio da história, pois, ao dominar a história dominam o presente, “já que a história é sempre uma interpretação do presente”.(BERNARDET,1982).
O argumento de Bernardet perde consistência, entretanto, no momento em que, ao defender uma liberdade estética e interpretativa dos fatos históricos no cinema este não deixa claro o conceito de história que se passa nas telas. Ao acusar os críticos de imporem uma visão única de história, ele próprio não caracteriza que visão histórica defende. Faltam-lhe neste momento a responsabilidade e o embasamento teórico de um historiador. Ainda referindo-se ao cinema como documento e à constituição de uma época no conteúdo deste documento, Jean-Louis Leutrat,(1995) admite que a discrepância temporal entre a época representada e a que produz esta representação não proíbe que relações de contrastes ou analogias se estabeleçam entre elas,Para o autor, a própria reconstituição, os figurinos, por exemplo, se opera com freqüência a partir de representações da época tomadas como imagem fiel de uma realidade . Mesmo dentro de uma reconstituição, Leutrat reconhece a presença de invenção.
O teórico francês mostra-se categórico quanto ao seu pessimismo com o cinema como documento ao afirmar que a imagem no cinema não exibe senão desajustes. Ao concluir, sustenta a tese de que o filme se apresenta raramente como um discurso de sabedoria, mesmo se ele pode produzir efeitos de sabedoria. E, quando se torna auxiliar de uma ciência, pede que seja acompanhado de um comentário. (JOLY, 1999).
O filme “Barravento” de Glauber Rocha é um exemplo típico de como se pode representar leituras divergentes de um mesmo fato. Ismail Xavier, em obra escrita em 1983, inaugura uma nova tese de análise sobre Barravento. De modo geral, antes de Xavier, o primeiro longa metragem de Glauber Rocha representava um claro e inequívoco discurso contra a religiosidade africana. Xavier propõe uma revisão desta tese, optando pela renúncia do enredo como eixo do discurso fílmico e centrando sua argumentação numa leitura específica sobre a imagem e o som da película. (XAVIER, 1993).O livro de Xavier analisa quatro filmes: dois de Glauber e dois que ele considere representativos do Cinema Não Novo brasileiro. O capítulo, que se refere a “Barravento”, é construído para provar que houve por parte de Glauber uma ambigüidade de ponto de vista que se alternou entre uma aceitação poética da cultura popular representada pelo candomblé uma denuncia da religiosidade como fator de alienação de um povo. Ao dar ênfase na análise da imagem e do som, Xavier abre possibilidades especulativas e dúbias no discurso do diretor baiano. Renato da Silveira, em texto escrito em 1998, desconstrói a tese de Xavier, afirmando que não há rigorosamente nada em “Barravento”, que não possa encontrar “lógica”, “ científica”.
Ainda, segundo ele, um certo deslumbramento com o exótico impede que isso fique claro. Ao contrário de Xavier, Silveira ocupa-se do texto escrito do enredo como eixo do discurso fílmico. Apesar de não descartar a análise das outras linguagens que compõem um filme como a imagem e o som, percebe que, no caso especifico de “Barravento”, o texto é o elemento essencial na caracterização de um discurso único e logicamente construído pelo diretor.Para construir sua tese, e conseqüentemente mostrar o equívoco cometido pór Xavier, substancia seu trabalho com uma caracterização do contexto ideológico do início da década de 60 e a influência deste contexto na formação intelectual do jovem Glauber Rocha.Faz uma analogia intelectual entre teoria e prática na obra de Glauber, fazendo emergir uma relação direta e inequívoca dos pressupostos teóricos do cineasta e o resultado final do discurso fílmico de Barravento. O texto de Renato da Silveira conclui por uma afirmação do filme como um manifesto político contrário à alienação popular causada pelo candomblé.
Ao fazer uma análise da presença da religião afro brasileira nos filmes brasileiros, Robert Stam (1997) aproxima-se da discussão em torno de “Barravento”. A posição do autor toma uma direção conciliatória entre a de Xavier e a de Silveira.Sua análise leva em conta tanto a abordagem materialista quanto a poética. Mostrando-se minucioso pesquisador, dá a devida importância aos assuntos de bastidores que envolveram a produção de Barravento. Embasaram seu texto, a formação religiosa dos principais envolvidos na produção, o grau de envolvimento destes mesmos personagens com o candomblé, a formação intelectual de Glauber Rocha, e o conflito histórico da produção representado pela exclusão de Luis Paulino dos Santos à frente da direção do filme.
Todos esses fatos levaram Stam a concluir que o objetivo de Glauber Rocha, com “Barravento”, foi mostrar que sob o exotismo e a beleza decorativa do misticismo afro brasileiro existia a fome, o analfabetismo e a miséria. Entretanto, em certo momento, o historiador americano acaba sucumbindo às suas limitações conclusivas do tema, ao afirmar que até certo ponto o filme é uma equação ir resolvível. Antonio Costa escreveu uma espécie de manual cinematográfico cujo principal objetivo foi facilitar a compreensão do complexo mundo que envolve o cinema. Sua obra busca, ao mesmo tempo, teorizar e historiar os fatos ligados ao cinema desde sua criação. (COSTA, 1987).
No primeiro capítulo cujo título é “O que é cinema?” trabalha com as diversas formas de abordar o cinema, contemplando neste conteúdo a história do cinema.A principal dificuldade do historiador do cinema é a de unificar, em uma única perspectiva,um fenômeno tão complexo com vários objetos de pesquisa que, embora separados devam estar coesos. Costa atribui a uma estruturação de tipo abrangente e comparativo o método correto para se atingir o êxito das histórias gerais do cinema. Jean-Louis Leutrat, em obra já citada, faz uma aproximação entre história e antropologia. Partindo da idéia de que o espaço é a matéria da antropologia e o tempo a matéria – prima da história, é possível entrecruzar as duas ciências a fim de fazer do cinema um domínio em que ambas ciências enriqueçam o conhecimento do objeto.Um projeto de história do cinema poderia ser o de reconhecer a maneira pela qual os atores sociais revestem de sentido as suas práticas e os seus discursos.
Em contribuição a uma história do cinema de forma abrangente, Walter da Silveira vai escrever “A História do Cinema Vista da Província”. Escrito sob o ponto de vista de quem viveu os melhores momentos do cinema baiano, o texto está, baseado em farta documentação, traça um panorama do cinema na Bahia e no Brasil na primeira metade do século XX. (SILVEIRA, 1978).
Organizada em forma de tópicos curtos, a obra de Walter, apesar de ser fiel a uma coerência cronológica, afasta-se da linearidade, demonstrando a dificuldade do historiador do cinema em contracenar sua história no tempo e no espaço. A opção por um texto basicamente informativo é fruto da dificuldade de unificação, levantada por Costa, dos vários objetos que compõem a história do cinema. Mesmo distanciando-se de certos rigores historiográficos, o livro de Walter da Silveira é essencial para o conhecimento do cinema baiano e brasileiro. Raimundo Nonato Fonseca (2000), em dissertação de mestrado defendida recentemente, aborda o cinema como eixo temático na construção de uma historia social da Bahia nas três primeiras décadas do século XX.
O trabalho de Nonato insere o lazer,representado através do cinema, como campo de estudo histórico do cotidiano baiano.Recorrendo a jornais como principal fonte de pesquisa, a tese em questão retrata, os costumes, hábitos e valores do baiano. Ao retratar o cotidiano do baiano, Fonseca objetiva perceber o sistema de trocas e incorporação cultural, ocorrido na cidade, entre o cinema e o povo da Bahia.A pesquisa de Fonseca ganha importância dentro da historiografia específica por servir de exemplo de abordagem por parte do objeto cinema numa perspectiva de cunho cultural.
Os textos abordados demonstram o quanto a relação cinema e história mostra-se embrionária em termos de conceitualização metodológica. As posições persistem contraditórias, mas convergem, de modo geral, quanto à utilização do cinema, seja como instrumento de um discurso ou como documento histórico. O uso do cinema como documento, entretanto, precede, por parte do historiador, um domínio das representações que caracterizam a linguagem cinematográfica. Cabe, portanto, ao historiador contemporâneo investir em sua capacitação interpretativa desta linguagem e apoderar-se do cinema de forma proveitosa como mais uma ferramenta no processo de produção historiográfica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991.BERNARDERT, J. C. Piranha no Mar de Rosas. São Paulo: Nobel, 1982.COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Rio de Janeiro: Globo, 1987.FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.JARVIE, I. C. Ver através dos filmes: Filosofia das Ciências Sociais. n. 8., 1978, p.378.JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Campinas: Papirus, 1999.KRACAUER, Siegfried. Theory of film: The Redemption of Physical Reality. Nova York: Oxford University Press, 1960.LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. (Orgs). “História: Novos Problemas”. In: A NovaHistória. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.LEUTRAT, Jean-Louis. Uma Relação de diversos andares: Cinema e História. Revista Imagens, n. 5, ago/dez 1995, p. 28-33.RAACK, R, J. Historiography as cinematography: a prolegomenon to filme work for historians. Journal of Contemporary History, n. 18, 1993, p. 416-18.STAM, Robert. Tropical multiculturalism: A Comparative HistorY of Race in Brazilian Cinema and cultura. London: Duke University Press, 1997.SILVEIRA, Renato. O Jovem Glauber e a Ira do Orixá. Seção Textos, n. 39, set/nov de1998, p. 88-115.XAVIER, Ismail. Sertão Mar, Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo:Brasiliense/ Embrafilme/MEC, 1993.
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