Não é, portanto, dizendo “não sou mais um pequeno-burguês, movimento-me livremente no universal” que o intelectual pode se unir aos tabalhadores. É, justamente ao contrário, pensando: “sou um pequeno-burguês; se para tentar resolver minha contradição, alinhei-me ao lado da classe operária e camponesa, não deixei por isso de ser um pequeno-burguês” (Sartre).(2)
Quais eram os elementos que a caracterizavam e o que era a cultura política compartilhada por muitos intelectuais e militantes populistas e de esquerda brasileiros durante os anos 50 e começo dos anos 60? Durante esse período, o Brasil sofreu um intenso processo de industrialização com resultados sociais muito contraditórios (3). O perfil da sociedade brasileira passava rapidamente de agrário-exportador a industrial, com uma forte urbanização causada pela migração de milhões de pessoas do campo para as cidades, mormente para o Rio e São Paulo. O mercado de trabalho e o mercado consumidor cresceram junto com as camadas médias urbanas, de onde saíram os intelectuais e simpatizantes dos setores populistas e de esquerda. Dentro desse contexto, os intelectuais aderiram a uma mesma leitura da realidade brasileira, que, grosso modo, caracterizava o país como subdesenvolvido, culturalmente colonizado, onde as “classes fundamentais” - a burguesia e o proletariado - eram incipientes, pouco desenvolvidas[i].
Um dos pilares sobre os quais essa cultura política - na qual subdesenvolvimento e dominação cultural eram categorias centrais - se sustentava era a busca do que seria “nacional” e “democrático”. Os debates relativos a estes atributos inseriam-se numa problemática mais ampla, a da questão desenvolvimentista. A maneira mais rápida do país superar suas contradições seria desenvolver-se economicamente de uma maneira autônoma e independente. Tal desenvolvimento teria de apoiar-se no fortalecimento das “forças progressistas”, formadas pela burguesia industrial nacionalista, o proletariado e os setores técnicos da classe média que, após serem ideologicamente esclarecidas pelos intelectuais “progressistas”, se tornariam uma “vanguarda política capaz e bem organizada” (4). Àquela época, segundo uma leitura reducionista do marxismo feita de acordo com os objetivos que se pretendia alcançar, desconsideravam-se as particularidades conjunturais e grandes questões teóricas gerais do próprio marxismo. Assim, para que o Brasil se desenvolvesse, uma “revolução burguesa” seria necessária, ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas proporcionaria à burguesia e ao proletariado as condições histórico-materiais para que se tornassem classes sociais para si, conscientes do seu papel histórico. Só havendo classes sociais conscientes, definidas e antagônicas, as contradições se acirrariam e as condições para a sua solução estariam colocadas. De acordo com esse esquema, a acumulação capitalista e as conquistas operárias fariam parte de um mesmo e único processo.
Nessa conjuntura sócio-político e cultural, que vai da morte de Getúlio Vargas até o golpe militar de 1964, o Partido Comunista do Brasil (PCB) tornou-se um dos mais importantes atores políticos. Ele “adquiriu um papel crescente na estrutura do desenvolvimento nacionalista” (Pécaut, 1990:141). Apesar de estar na ilegalidade desde 1947, o Partido contava com numerosos e influentes intelectuais que gravitavam em torno dele, seja como militantes, seja como simpatizantes (ibid: 142). A aproximação desses intelectuais se deu, entre outros motivos, graças à participação do PCB na campanha pela nacionalização do petróleo, que culminou com a criação da Petrobras, em 1953, ao seu posicionamento a favor da industrialização nacional e da formação de uma ampla coalizão nacionalista e ao seu posicionamento como “vanguarda” do movimento pelas “reformas de base” (ibid.). Sua influência vai-se fazer sentir de forma marcante sobre o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e, mais tarde, no CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes).
O ISEB foi o principal arauto das teses desenvolvimentistas e exercia influência na política dos governos JK e Jango. Forneceu os alicerces teóricos para as mais diversas correntes, inclusive para membros do governo, e quadros para os vários escalões desses dois governos. Foi criado no Rio, em julho de 1955, por um decreto do presidente interino Café Filho e recebeu subvenções da CAPES (Pécaut, op.cit: 109). A proposta do grupo de intelectuais que fundou o ISEB era assumir uma liderança na política nacional por seus próprios meios. Eles se dispunham a arregimentar e organizar as forças progressistas e esclarecê-las ideologicamente. Se autodefiniam como uma vanguarda capaz e bem organizada. O ISEB foi fechado pelos militares após o golpe de 1 de abril (5).
O CPC da UNE foi formado em 1962 e fechado pelo golpe militar em 1964. É interessante notar-se que a experiência do CPC “está filosoficamente ligada ao ISEB” (Ortiz, 1986: 68). Sua meta era utilizar elementos da cultura popular para desalienar o povo. A alienação é a categoria fundamental que os cepecistas utilizaram para analisar a realidade brasileira. A cultura popular é vista como verdadeira enquanto a cultura das classes dominantes é alienada (6).
Algumas das teses do PCB chegaram a situar-se no centro dos debates intelectuais, transformando-se, muitas vezes, numa espécie de senso comum no qual os intelectuais progressistas se reconheciam. “Em torno do Partido Comunista e de sua interpretação do nacionalismo formou-se uma cultura política singularmente fecunda” (Pécaut, op.cit.:141). Quatro fatores teriam contribuído para a aproximação entre intelectuais e o PCB: a) o partido era o portador da tradição estatal dos intelectuais brasileiros que via no Estado o veículo capaz de modernizar a sociedade brasileira, realizando as mudanças estruturais que se faziam necessárias; b) responsabilizou-se pelo acesso à modernidade; c) concebia o povo como a encarnação simbólica da nação; d) sinalizava a possibilidade de que a “revolução brasileira” pudesse ser feita de forma pacífica, via desenvolvimento econômico e reformas “democráticas” da Constituição (ibid.:144-8).
Em nome dessa “revolução brasileira”, o Partido criou o conceito de forças progressistas que se confundia, até um certo ponto, com o de “massas populares” que, após sofrerem uma ação ideológica educadora-conscientizadora, se tornariam povo. As categorias massa e povo eram definidas nessa época, por algumas correntes marxistas, em relação ao grau de consciência alcançado. A massa não tem consciência; o povo, a tem. Neste momento, a questão da afirmação nacional se sobrepõe à questão democrática: as contradições entre as “classes fundamentais” deveriam permanecer latentes e serem resolvidas de forma pacífica. Mesmo porque, como já foi dito, essas duas classes mal existiam no Brasil, cuja economia baseava-se num modelo agrário-exportador. Entretanto, nesse período, as formas de representatividade não são tidas como questões fundamentais. Elas não devem atrapalhar o desenvolvimento da aliança nacionalista progressista.
O papel que a produção cultural teria que desempenhar nesse processo de afirmação nacional era fundamental. A burguesia e as camadas urbanas guiavam seu comportamento por aquilo que era ditado pela produção cultural estrangeira, principalmente pelo cinema de Hollywood. Diante disso, a necessidade de se criarem condições para que o artista brasileiro pudesse enfrentar as produções estrangeiras era uma das frentes de atuação dos nacionalistas. A luta pela afirmação de uma cultura nacional tinha como um dos seus principais objetivos buscar fazer com que o cinema brasileiro, por ser uma arte e um veículo de comunicação de massa, ocupasse os espaços do cinema estrangeiro ou que, ao menos, conseguisse dele tomar uma fatia do mercado brasileiro.
1 - Cinema Novo: primórdios.
Nos anos 50, encontramos um grupo de jovens que começavam a discutir a idéia de se criar um cinema nacional, que construísse uma identidade político-cultural para o povo brasileiro, e que posteriormente vieram a criar o Cinema Novo. Porém, os cinemanovistas não foram os primeiros a perceberem a importância de se lutar por um cinema brasileiro forte, com uma linguagem própria. Uma geração anterior (o critério aqui não é de idade, mas de atividade) já havia começado a articular, no começo da década do 50, uma crítica sobre o cinema brasileiro, diferente daqueles críticos dos anos 30 e 40 que nem sequer consideravam a existência de tal cinema. Essa crítica questionava a dependência do mercado brasileiro aos filmes importados, a submissão do cineasta no Brasil à linguagem do cinema produzido em Hollywood e outros centros mais desenvolvidos e começou a lutar para que o cinema nacional se tornasse uma das expressões da cultura brasileira, o que depois foi encampado pelo Cinema Novo. Nem os críticos que os precederam cronologicamente, nem os cinemanovistas discutiam mais a formação do povo - assunto praticamente esgotado pelos modernistas em 1922 -, já constituído como uma das categorias fundamentais da cultura política da esquerda nacionalista e tido como um dos principais agentes de mudança da realidade brasileira. Faltava, entretanto, definir as características e especificidades daquele povo, tarefa a que se propuseram os criadores do Cinema Novo. O ponto de partida deveria ser um mergulho na “realidade” sócio-político-cultural brasileira, da mesma forma que o fizera o movimento modernista cerca de trinta anos antes. A identidade do povo e a cultura nacional que pretendiam forjar tinham um forte componente anti-imperialista. Seguindo Frantz Fanon, eles acreditavam que “lutar pela cultura nacional significa, antes de tudo, lutar pela libertação nacional, por aquela base material essencial, que torne possível a construção de uma cultura” (7).
O Brasil era visto como um país colonizado culturalmente e esta característica era muito marcante com relação ao cinema. A idéia de uma cultura colonizada está intimamente subordinada às idéias desenvolvimentistas, então em voga. Em nome do desenvolvimento brasileiro, era preciso mudar uma atitude resignada para com a realidade do país. Esta conjuntura não poderia ser transformada enquanto não se alterasse a atitude das pessoas frente ao american way of life, que moldaria o imaginário da burguesia e das camadas médias da população brasileira e tinha no cinema americano um de seus mais importantes instrumentos de difusão. No caso do Brasil e do cinema brasileiro, era preciso que o filme nacional ocupasse o lugar do produto estrangeiro. O cinema brasileiro seria estrangeiro no próprio país porque estava destinado a ocupar as migalhas do mercado, deixadas cair da mesa farta do cinema de Hollywood. Para Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, analisando a “situação colonial” do cinema brasileiro, tal como definida por Paulo Emílio Salles Gomes,
O fator básico que explica a “situação colonial” do cinema brasileiro é o fato de que o “produto importado” ocupa o seu lugar. Trata-se, portanto, de uma definição de ordem econômica que será metaforicamente transposta para o campo da cultura. Importamos não apenas objetos manufaturados, mas idéias prontas - e formas, modelos, estruturas de pensamento - forjadas em função de realidades diversas que correspondem mal a nossa própria realidade. Estas idéias ocupam um tal espaço em nossas mentes que pouco sobra para que nelas se desenvolvam idéias próprias. Além de produtos industriais, os filmes são também produtos culturais. Juntamente com os filmes, importamos uma concepção de cultura - e uma concepção de cinema que identifica com o próprio cinema o cinema estrangeiro. Nisto reside o cerne da “colonização” cultural: a “situação colonial” - cuja marca cruel e inescapável é a mediocridade - se configura quando se adota um modelo importado que não se tem condições de igualar (Galvão e Bernardet, 1983:166-7).
A questão colonial, era um dos grandes temas políticos que dominavam as esquerdas mundiais juntamente com as guerras nacionais anti-imperialistas. A revolução em Cuba e a libertação da Argélia eram alguns dos mais importantes paradigmas da esquerda mundial, nesse momento. “O prestígio do terceiro mundismo esteve ligado ao entusiasmo pelas lutas de emancipação nacional e a reservas em relação à União Soviética” (Schwartz, 1987: 127). Assim, um problema da esfera política era transposto para a esfera cultural e servia como pressuposto básico para a atuação dos cinemanovistas. Flávio Moreira da Costa afirma que
... nossa cultura era importada: no bojo do colonialismo político-econômico vinha o colonialismo cultural (...). Em conseqüência disso, (...) [fazia-se] uma confusão entre cultura e erudição (...) ignorância de uma cultura brasileira popular, mas conhecimento [de autores estrangeiros] (Costa, 1966:172).
Em um texto de 1960, escrito logo após o término da Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, Paulo Emílio Salles Gomes analisa a situação colonial do cinema brasileiro tendo como ponto de partida a relação público/produtor. Ele diz, referindo-se mais especificamente aos “chanchadeiros”, que os produtores
produzem determinados gêneros de filmes que eles próprios desprezam, alegando ser o único tipo de cinema brasileiro que o público aceita. No fundo, esses homens (...) estão convencidos de que o público brasileiro é infenso ao cinema nacional (...) Para ambos, cinema mesmo é o de fora, e outra coisa é aquilo que os (produtores) fazem e o (público) aprecia. (Salles Gomes, 1981:287).
Os próprios produtores dos filmes brasileiros que conseguiam grandes sucessos de público desqualificavam seu produto evidenciando, assim, mais um sintoma de dominação colonial.
A luta do Cinema Novo em prol de um cinema nacional ganhou força a partir do começo dos anos 60 quando o grupo, apesar de espalhado (uns, estudando cinema no exterior, outros, vivendo e trabalhando no Brasil), percebeu que só conseguiria mudar alguma coisa se se unisse. Em carta de Glauber Rocha a Paulo César Saraceni, que estava estudando cinema na Itália, é possível captar essa ânsia em criar um cinema no Brasil. Diz o texto:
(...) estamos recriando nosso cinema e você precisa voltar para ser soldado nesta luta. Não quero que você fique mais tempo na Itália. (...) precisas FAZER FILMES aqui no Brasil dentro de nossa luta: joaquim [Pedro de Andrade], eu, [Luis] paulino [dos Santos], você, miguel [Borges], marcos [Faria], leon [Hirszman] e outros novos que surgirão (aqui foram respeitados a pontuação e os destaques do texto original) (Saraceni, 1993:94-95).
Em outra carta a Paulo César Saraceni, Glauber Rocha deixa transparecer toda a sua vontade e angústia em lançar o movimento.
Escrevi um artigo negando o cinema. Não acredito no cinema, mas não posso viver sem o cinema. Acho que devemos fazer revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às ruas, me deixou sem dormir. Precisamos fazer a nossa aqui. Cuba é o máximo (...). Estão fazendo um novo cinema (...), vários filmes longos e curtos. Estou articulando com eles um congresso latino-americano de cinema independente. Vamos agir em bloco, fazendo política. Agora, neste momento, não credito nada à palavra arte neste país subdesenvolvido. Precisamos quebrar tudo.
Do contrário eu me suicido (Saraceni, op.cit.:101).
Dois dados importantes surgem nessa carta. O primeiro, é a associação de um cinema nacional com as lutas nacionais anti-imperialistas. O segundo, é que quando ele diz que não acredita mais no cinema, referia-se a um determinado tipo de cinema que partia de um modelo esgotado e falido, cuja estrutura era formada por estúdios, grandes orçamentos, star syistem... Mas havia novidades interessantes. Na mesma carta, cujo um trecho foi transcrito acima, Glauber Rocha pede que Gustavo Dahl, que também estava na Itália estudando cinema, envie-lhe um artigo sobre “o novo Antonioni, L’aventura” (ibid: 100). Por isso, para superar esse cinema “reacionário”, Glauber Rocha estava ansioso. Ele queria que o grupo de amigos lançasse logo um movimento que viesse a revolucionar a linguagem do cinema, um cinema que ouvisse a voz do homem (Rocha, 1981:17): “Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isso nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa” (ibid.). “Nossa geração tem consciência: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes antiindustriais (...)” (ibid.).
O Cinema Novo conseguiu uma grande vitória ao fazer com que o cinema brasileiro passasse a ter sua existência reconhecida pelos principais críticos de cinema do Brasil e passasse a freqüentar suas colunas com maior assiduidade. Antes dele, Moniz Vianna, Ely Azeredo e outros não reconheciam, sequer, que existisse um cinema nacional, exceção feita aos filmes da Vera Cruz. As produções brasileiras eram tratadas com desdém e ironia. Em geral, esses críticos só se dignavam a escrever sobre as produções européias e norte-americanas que chegavam até nós. Ely Azeredo, que foi quem deu o nome ao Cinema Novo, renegou o seu “filho” e discordava veementemente dos defensores do movimento, polemizando com seus diretores.
2 - Reação à Vera Cruz:
A Vera Cruz foi uma tentativa, malograda, de se instalar uma indústria cinematográfica no Brasil. Fundada em São Paulo em 1949, com os estúdios em São Bernardo do Campo, pretendia produzir no Brasil um cinema de “qualidade” para fazer frente àquelas “fitas horrorosas de que todo mundo falava muito mal, mas que na verdade nunca ninguém tinha visto” (8). Fazer cinema de “qualidade” significava, para os empresários que fundaram esse estúdio, fazer cinema como os europeus, principalmente ingleses e italianos neo-realistas “até agora a maior revelação cinematográfica do pós-guerra” (citado por Galvão, 1981:81). O cinema americano era tido como um cinema puramente de espetáculo, incapaz de satisfazer o gosto de um público mais refinado. Para Mariarosaria Fabris, não há contradição no fato de os dirigentes da Vera Cruz criticarem o cinema norte-americano e utilizarem sua forma de produção porque, para eles, o que era lamentável não eram os recursos técnicos utilizados (estúdio, equipe numerosa etc.), mas o mau uso que era feito daqueles recursos (Fabris, 1994:34). O cinema brasileiro era tido como inferior e nem considerado cinema era. Por isso, ao criarem a Vera Cruz, seus diretores contrataram técnicos estrangeiros, na sua maioria ingleses, para trabalharem em seus estúdios. Uma das poucas exceções feitas na área técnica foi a contratação de Alberto Cavalcanti para ser seu produtor geral (9). Cavalcanti estava radicado na Europa havia anos. Participara ativamente do movimento documentarista inglês dos anos 20 e 30 e do movimento da vanguarda francesa junto com Jean Renoir e outros. Ele foi chamado a dirigir a empresa mais por sua longa relação com o cinema europeu do que por sua relação com o cinema brasileiro.
Um fato é interessante de se notar. O Neo-realismo, tido, pelos fundadores da Vera Cruz, como a maior revelação cinematográfica do pós-guerra, influenciou a escolha dos técnicos contratados e era um dos modelos de cinema a serem seguidos. Porém, não conseguiu influenciar determinantemente a forma de produzir desse estúdio. O Neo-realismo tinha como algumas de suas características principais a produção barata, fora dos estúdios, com atores pouco conhecidos ou amadores. Ora, a Vera Cruz construiu um estúdio onde eram produzidos a maior parte dos filmes e isso implicava numa produção cara, pouco ágil, com o uso de muitos técnicos e contratou atores consagrados de teatro do Rio e de São Paulo. Alex Viany (que trabalhou na empresa) teceu um comentário pertinente sobre esse assunto ao afirmar que
Houve um abrupto encarecimento da produção, nem sempre justificado pela melhoria técnica e artística. Muita gente diz, provavelmente com razão, que a Vera Cruz quis voar muito alto e muito depressa, construindo estúdios grandes demais para seu programa de produção, ao mesmo tempo em que se descuidava de fatores tão importantes como a distribuição, a exibição, a administração e a arrecadação (Viany, 1987: 109).
E complementa dizendo que “quando veio a tão prevista derrocada, espalhou-se o desânimo. Resultado imediato: retração dos capitais, paralisação quase total da produção” (ibid.). Esse “modelo” de produção, segundo Cacá Diegues, persistiu e causou problemas ao cinema paulista “por causa exatamente da tradição da Vera Cruz. Em São Paulo, cada vez que um sujeito queria fazer um filme era sempre confrontado com o sucesso artístico da Vera Cruz, de uma maneira positiva, e, de uma maneira negativa, com o seu fracasso econômico” (Diegues, E, 1993) (10).
Outra crítica feita à Vera Cruz é não ter usado, ou ter usado pouco, técnicos e diretores que já faziam cinema no Brasil. Essa diretriz teria tornado seus filmes muito pouco brasileiros. Os técnicos estrangeiros não entenderiam a cultura do país que estavam exibindo nas telas e nem certas características locais específicas, como a luminosidade. Além do mais, a empresa preocupava-se apenas com a produção, deixando a distribuição a cargo de multinacionais também produtoras de filmes e que não tinham interesse nenhum em ceder um pedaço do seu mercado para o cinema brasileiro. Segundo Mariarosaria Fabris,
[para a Vera Cruz] o cinema nacional (...) era entendido como tal enquanto produção e não enquanto conquista de mercado, também porque a Vera Cruz estava mais interessada em projetar-se no exterior do que em assegurar para si o mercado brasileiro. Caso contrário, não se explicaria mais tal erro num período em que não faltaram alertas contra o perigo que a inflação de fitas norte-americanas constituía para qualquer país (Fabris, op.cit.:43).
Viany reconhece, entretanto, aspectos positivos na Vera Cruz ressaltando uma melhora técnica e artística dos filmes brasileiros graças aos técnicos estrangeiros que vieram para cá e que, de uma certa maneira, treinaram os brasileiros para desempenharem melhor suas funções. Ressalta também que esta experiência empresarial “precipitou a industrialização do cinema no Brasil” (Viany, op.cit.: 109).
Apesar de ser uma experiência realizada em São Paulo, a derrocada da Vera Cruz exerceu influência sobre o Cinema Novo, no Rio de Janeiro, sobretudo enquanto padrão econômico, técnico, cultural e artístico a ser evitado. A Vera Cruz tentou implantar um modelo de cinema que não deu certo e que, na opinião de todos os cinemanovistas, não tinha condições de dar certo. Era, portanto, um modelo a ser rejeitado. Entre outras coisas, a produção em estúdio exigia muitos capitais, que nunca estiveram disponíveis no Brasil para o cinema e os cineastas brasileiros deveriam privilegiar a produção barata. A produção em estúdio era um processo pouco ágil e, por isso, devia-se privilegiar a produção de filmes rodados em espaços abertos, com luz natural e câmera na mão. As produções da Vera Cruz se baseavam em um cinema formalmente pouco criativo, como o que era feito na Europa antes dos cinemas novos europeus, e para os cinemanovistas, o cinema brasileiro deveria se preocupar com formas e conteúdos novos. O cinema da Vera Cruz era pouco brasileiro, porque mostrava o homem e a cultura do país de forma estilizada, exótica, pouco natural e, muitas vezes, negativa; o novo cinema brasileiro deveria ter como sua base primordial o homem e a cultura do país. Como disse Mário Carneiro em sua entrevista “a gente saía do estúdio e ia para o ar livre para tentar documentar ao máximo os filmes (...) ao invés de se prender ao estúdio” (Carneiro, E, 1993). Para David Neves, o cinema da Vera Cruz era “muito estrangeirado, veio muita gente contratada de fora e não deu certo, então eles desistiram” (Neves, E, 1993). Paulo César Saraceni diz que “nós não queríamos aquele equipamento. Nós queríamos fazer filmes já, naquele momento, com o que tivesse” (Saraceni, E, 1993).
As produções da Vera Cruz serviram como um parâmetro real e negativo para o Cinema Novo e representavam aquilo que deveria ser rejeitado e descartado na produção de um cinema nacional e popular. Sua linguagem era considerada reacionária e burguesa por não retratar o homem brasileiro, sua cultura, seus problemas, sua forma de falar nem retratar o ambiente do país. Na luta contra o sudesenvolvimento e a dependência cultural, as produções da Vera Cruz eram tidas como inimigas pelos cinemanovistas, já que não ajudavam a desalienar o povo e reforçavam modelos que submetiam o público brasileiro à dependência cultural.
3 - Chanchada: o alvo principal.
No Brasil dos anos 50 e 60, dos estúdios paulistas e das chanchadas, fazer bons filmes era sinônimo de fazer filmes nos moldes do cinema estrangeiro de “qualidade”, feito por Hollywood pelos cinemas industriais europeus. A chanchada procurava parodiar esse cinema (a Atlântida fez várias paródias de filmes norte-americanos) (11).
Como alternativa ao cinema de “nível internacional” da Vera Cruz, e à chanchada, o Cinema Novo propunha um cinema anti-industrial, “aberto, sem nenhum dogma, nenhum preconceito, (...) autoral, sincero, criativo, revolucionário e que olhasse a realidade social e econômica do Brasil com vontade de analisá-la, transformá-la num mundo melhor para todos” (Saraceni, 1993:118) e com um “alto nível de compromisso com a verdade” (Rocha, 1981:30). Podemos acrescentar a isso a palavra moderno. Moderno porque contemporâneo aos cinemas novos que se fazia em outros países naquele momento e porque diferente do antigo cinema brasileiro. Das antigas produções brasileiras, os cinemanovistas só consideravam dignos de serem vistos os filmes de Humberto Mauro, pela sua “brasilidade”, e, muito posteriormente, Limite. Ainda segundo Paulo César Saraceni,
Se adotamos o nome cinemanovo, não foi por imitação. É porque - certos ou errados - envergonha dizer que fazemos ou vamos fazer cinema brasileiro ombro a ombro com aqueles que, até agora, apenas gastaram dinheiro com imponências fracassadas. (Saraceni, op.cit.: 119).
O Cinema Novo, como todo movimento que propõe uma mudança radical e precisa demarcar e conquistar seus espaços, tinha que definir os inimigos a combater. Seu alvo principal foi a chanchada. Glauber Rocha a define, juntamente com os filmes feitos pelos estúdios paulistas, como um “cinema populista”, que “denuncia o povo às classes dominantes” (Rocha, 1963:82). As opiniões de outros cinemanovistas sobre a chanchada caminham nessa mesma direção. Walter Lima Jr. (Lima Jr., E, 1993), por exemplo, a qualifica como “um filme único que se repetia a cada ano”, “uma porcaria”, “cópia do cinema americano”. Para Cacá Diegues, a chanchada era “o fim da picada, uma coisa de uma vulgaridade de paródia mal feita do cinema americano” (Diegues, E, 1993). De acordo com Eduardo Coutinho, “era um cinema para um público popular e infantil (grifo nosso), que jamais ia ser levado a sério e que, portanto, não poderia mudar coisa alguma”. (Coutinho, E, 1993). Esse enunciado de opiniões não pretende ser exaustivo e completo; várias outras poderiam ter sido citadas. Entretanto, estas aqui ilustram o sentimento antichanchada que percorria o movimento. O importante é ficar claro que a chanchada era condenada por sua falta de ousadia estética, por seu caráter de imitação do cinema de Hollywood, por ser um cinema primário e que não ajudava o trabalho de conscientização do público e de mudanças na realidade do país. Em suma, a chanchada era criticada, basicamente, por não se enquadrar nos projetos que as esquerdas brasileiras haviam elaborado para o Brasil e o povo brasileiro; na imagem que estas queriam passar do país; na proposta, mais específica, que as esquerdas criaram para a função que a arte deveria desempenhar naquela conjuntura.
Depois de alguns anos, quase todos os cinemanovistas fizeram autocrítica e alguns deles utilizaram elementos da chanchada. Esse é o caso de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. Nele foram usados não só elementos estéticos da chanchada como também Grande Otelo, estrela de vários filmes da Atlântida. Numa releitura a posteriori, muitos deles alegam nunca terem sido contra a chanchada. Cacá Diegues afirma que “não havia uma campanha contra o velho cinema brasileiro” (Diegues, E, 1993) porque este já não existia mais: os estúdios paulistas tinham falido e a chanchada havia migrado para a televisão.
Não havia uma campanha contra a chanchada porque não havia mais um cinema “oficial” contra o qual lutar, como foi o caso na França, na Alemanha, na Itália e outros países. Daí é que, eu acho, nasce, um pouco, a megalomania inicial do Cinema Novo porque o inimigo direto é o cinema americano (ibid.).
Zelito Viana diz que, naquela época, “a gente, lamentavelmente, não via” nada de positivo na chanchada. “Hoje a gente tem consciência de que a chanchada era muito importante” (Viana, E, 1993). “O Cinema Novo não ajudou a destruir as chanchadas; todo mundo as adorava e o Cinema Novo acabou ficando muito ligado à chanchada” (Carneiro, E, 1993). Já Flávio Moreira da Costa vê na chanchada “uma tradição cultural, aí no sentido antropológico, brasileira: o carnaval, a festa, a festa como cultura. Nesse sentido, ela expressou (...) muito o Rio de Janeiro, mais que o Brasil” (Costa, E, 1993). Walter Lima Jr. diz que Macunaíma e Terra em Transe integraram muita coisa da chanchada. Mas faz uma ressalva: “eu não tenho uma visão positiva sobre a chanchada” (Lima Jr., E. 1994).
A julgar pela maioria dos pontos de vista atuais desses cinemanovistas, o azar da chanchada foi o Cinema Novo ter surgido no momento em que o imaginário construído por ela ainda estava muito vivo na memória do público e das pessoas de cinema e, também, ter sido pega no fogo cruzado da batalha ideológica entre as elites brasileiras - burguesia e oligarquias x intelectuais de esquerda e setores nacionalistas. A radicalidade do momento não permitiu ao Cinema Novo perceber aspectos positivos contidos na chanchada, com isso não levando em conta os pontos de vista de dois dos seus mestres mais respeitados. Alex Viany dizia que “mesmo nos mais despretensiosos e desleixados filmusicais e chanchadas musicais poderão ser encontrados elementos valiosos para a formação do núcleo de um gênero popular-brasileiro capaz de agradar tanto aqui como no estrangeiro” (Viany, op.cit.:133-4). Em texto escrito nove anos depois e publicado na edição aqui em uso, ele volta ao tema alegando que
a chanchada serviu para provar que o filme brasileiro podia ser um bom negócio; pondo na tela trejeitos e o linguajar da gentinha do Rio de Janeiro, acabou por sua vez com a lenda (...) de que o brasileiro não sabia comportar-se defronte da câmera e de que a língua portuguesa não se prestava aos diálogos cinematográficos. Entre 1944 e 1954, (...) Oscarito e Grande Otelo (...) estabeleceram um clima de intimidade com as platéias populares (ibid.:133-4).
Em artigo de 1959, Paulo Emílio Salles Gomes indaga “se o caminho certo não seria o exame mais cuidadoso da vitalidade sociológica da comédia carioca” (Salles Gomes, op.cit.: 44). Em outro texto, publicado quatorze anos depois, fora, portanto, dos debates calorosos da época, Paulo Emílio Salles Gomes vê um “marco” (Salles Gomes, 1980:91) importante no fenômeno chanchada devido à uma “produção ininterrupta durante cerca de vinte anos de filmes musicais e chanchadas (...) desvinculada do gosto do ocupante e contrária aos interesses estrangeiros” (ibid.) e à contribuição das “invenções cariocas efêmeras em matéria de anedota, maneira de dizer, julgar e se comportar” (ibid.).
[O] acordo que se estabelecia entre [a chanchada] e o espectador era um fato cultural incomparavelmente mais vivo do que o produzido até então pelo contato entre o brasileiro e o produto cultural norte-americano. Neste caso o envolvimento era inseparável da passividade consumidora ao passo que o público estabelecia com o musical e a chanchada laços de tamanha intimidade que sua participação adquiria elementos de criatividade (...). A adoção, pela plebe, do malandro, do pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma polêmica de ocupado contra ocupante (ibid.:91-2).
A chanchada criticava de maneira sarcástica a xenofilia das elites brasileiras (Dias, 1993:33) e apresentava “um modelo ou um valor diferente daquele da elite letrada da época” (ibid.:35). Discorrendo sobre aquilo que Paulo Emílio Salles Gomes definiu como “intimidade” e “criatividade” do público, Rosângela de Oliveira Dias afirma que:
Os espectadores barulhentos das chanchadas estariam criticando a forma sisuda e tradicional de assistir aos filmes. As chanchadas não eram assistidas de forma disciplinada e imóvel, comum à missa católica. A platéia não ficava quieta e bem comportada diante desse tipo de filme; transformava-se em artista, como na festa carnavalesca, ignorando a distinção entre atores e espectadores, colocando o “mundo ao revés” (ibid.:45).
Completando sua análise, esta autora pretende “mostrar que as chanchadas devolviam-nos o bagaço da cultura colonizadora devidamente mastigada e desnuda, expondo através da sátira e do deboche as mazelas de nossas sociedade” (ibid.:10).
Sem querer ser exaustivo no levantamento dos filmes (12), os temas das chanchadas eram notícias de jornais (O homem do Sputnik, de Carlos Manga), políticos e pessoas famosas da época (Carnaval em Caxias, de Jorge Ileli e Paulo Wanderley, que parodia a figura de Tenório Cavalcanti (13), paródias de filmes de Hollywood (Nem Sansão nem Dalila, de Carlos Manga) e temas políticos (O petróleo é nosso, de Watson Macedo). A propósito de Nem sansão nem Dalila, Sérgio Augusto escreveu que se tratava de “uma promissora sátira à condição subalterna do cinema brasileiro (...) e também ao populismo, à demagogia, às alianças políticas espúrias e ao golpismo militar” (Augusto, 1989:134). Com relação a O homem do Sputnik, ele identificava críticas “[à] morosidade de nossas repartições públicas, [à] futilidade da alta burguesia, [à] cupidez das grandes potências, [aos] absurdos da guerra fria, [aos] concursos de miss (...)” (ibid.:144) e completa dizendo ainda que “a última chanchada da Altlândida digna de nota (O homem do Sputnik) foi, portanto, um exercício de esquizofrenia: uma sátira ao poder americano, usando as mesmas armas de sedução e manipulação da comédia clássica americana” (ibid.).
Por último há ainda o carnaval, elemento do qual a chanchada é quase um sinônimo e ao qual o Cinema Novo quase não deu importância, ignorando Oswald Andrade, que reconheceu a importância do carnaval para a cultura brasileira ao afirmar que “o carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça” (Andrade, 1978:5). “As chanchadas ao carnavalizarem a sociedade tornam-se um ritual carnavalesco que procura colocar o mundo às avessas” (Dias, op.cit.:44). A estrutura da chanchada era semelhante a do carnaval. Inversões ocorriam a toda hora: nobres em plebeus, ricos em pobres, homens em mulheres etc. Os filmes sempre acabavam em festa. O Cinema Novo pouco considerou esta particularidade. O carnaval é até hoje a principal forma espontânea de organização e representação popular. No entanto, como já dissemos antes, o reconhecimento da manifestação popular, não estava na ordem do dia das esquerdas de então. O povo tinha que ser submetido a um projeto específico de tomada de poder feito para ele pelas elites intelectuais de esquerda. Desta forma, muitos elementos importantes da cultura popular foram relegados a um segundo plano.
4 - Do isolamento e da consagração.
Ao criticar a chanchada e afastar-se do público cultivado por ela, o Cinema Novo relegou-se a um enorme isolamento. Dessolidarizando-se de sua classe de origem, criticando-a pela sua xenofilia e identificação com a cultura norte-americana e européia, esses quadros perderam o apoio que essa poderia lhes dar. Em contrapartida, o “ocupado” - o povo - não se sentia representado por esses jovens que só se dirigiam a ele para mostrar-lhe o quanto agia erradamente. Isso criou um enorme problema de comunicação e relacionamento. O público, que era basicamente urbano, não ia ver os filmes do Cinema Novo (14). Nos anos 50 e 60 existiam enormes continentes populacionais no campo que jamais tinham tido acesso a qualquer tipo de imagem em movimento. O camponês dificilmente ia ver um filme, brasileiro ou não, devido as suas condições materiais de existência e à dificuldade de se levar o aparato exibidor (projetores, filmes etc.) até ele. A burguesia e a classe média não viam porque não gostavam da imagem do Brasil que lhes era mostrada. Quanto à relação entre o Cinema Novo e os operários Maurice Capovilla contou-nos uma estória interessante: entre 1961 e 1962, a Cinemateca Brasileira montou um cine-clube dentro do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de São Paulo. Aí foram passados diversos clássicos do cinema mundial, que contaram com uma ínfima presença de público. No entanto, quando foi exibido, num desses programas, o filme Zuyderzee, de Joris Ivens - que mostra o processo de construção de um enorme dique na Holanda -, houve uma grande afluência de público e o filme foi exibido diversas vezes naquele dia. Maurice Capovilla, que era o programador desses filmes e homem de ligação da Cinemateca com esse sindicato, afirma que isso ocorreu porque “o filme tinha a ver com a vida deles, que, afinal, eram operários da construção civil” (Capovilla, E, 1993). Na maioria das vezes, o operário não via os filmes do Cinema Novo porque tratavam de temas que não lhes despertavam interesse.
Apenas os estudantes e os intelectuais que compartilhavam da mesma cultura política que os realizadores iam ver os filmes. Fica caracterizado, assim, um movimento endógeno retroalimentado.
Embora isolado internamente, o movimento ganhou legitimidade no exterior, através da conquista de novos públicos e novos mercados que puderam assegurar-lhe que estava no caminho certo. Os diretores do Cinema Novo exibiram seus filmes em importantes festivais internacionais e ganharam vários prêmios. Este reconhecimento externo gerou algumas conseqüências. A primeira foi uma maior receptividade pela classe média brasileira que, por ser xenófila (como a chanchada já havia identificado e parodiado), passou a olhar esses filmes com um pouco mais de condescendência, já que agora eles tinham o aval dos intelectuais e artistas dos países desenvolvidos. Em segundo lugar, causou uma certa perplexidade aos cinemanovistas, pois embora tenha havido um reconhecimento maior do seu trabalho, isso não foi suficiente para garantir-lhes uma fatia maior do mercado exibidor brasileiro. Esta era a questão fundamental: sem acesso ao grande público não seria possível combater o imperialismo e o colonialismo cultural; não seria possível criar o novo homem brasileiro; não seria possível desalienar o povo. Das propostas fundamentais do movimento, uma das poucas que pôde ser posta em prática, e que garantiu seu reconhecimento externo, foi a busca de uma forma nova e revolucionária. Isso não depende do público e passa por uma postura particular do realizador.
Daí advém uma terceira conseqüência: a endogenia do movimento. Os únicos que compreendiam suas propostas e objetivos, em sua totalidade e complexidade, eram os próprios cinemanovistas ou aqueles setores identificados com eles. Assim, criou-se um processo de isolamento do público, muito embora desejassem intensamente alcançá-lo. Num texto de 1972, Cacá Diegues afirma que:
Durante muitos anos, tentamos construir o mundo através do cinema. Não foi possível. De raiva, resolvemos destruí-lo. E ele, nem te ligo, continuou igualzinho. Aí botamos o mundo entre parênteses e inventamos outro de brincadeira. Um gueto onde nada de fora pudesse entrar para perturbar o brinquedo. (Diegues, 1988:11).
Neste ponto, isolado, o Cinema Novo volta-se para o Estado a procura de um novo espaço que o movimento pudesse ocupar para tentar manter-se vivo. Tal como as gerações de intelectuais que os precederam, os cinemanovistas almejavam não só participar das elaborações das políticas estatais, como tomar o aparelho estatal. A partir do golpe militar, esta segunda hipótese mostrou-se muito remota, mas eles não desistiram da primeira (Ramos, 1983). Do Estado, o Cinema Novo esperava, entre outras coisas, leis que lhe garantissem o acesso ao circuito exibidor e facilidades para a produção. Essa foi a maneira encontrada para combater o cinema norte-americano e tentar abocanhar uma fatia maior do mercado. Após o golpe de 1964, o movimento viu-se obrigado a buscar apoio no Estado autoritário que censurava suas produções e dificultava, não só a exibição, mas ainda a exportação dos filmes.
Um dos seus principais aliados estatais foi a Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica (CAIC) criada em 1963 no antigo estado da Guanabara pelo governo Carlos Lacerda (15). Para Paulo César Saraceni esta “foi, de longe, a melhor ajuda governamental que o cinema brasileiro teve em toda a sua trajetória” (Saraceni, 1993: 162). A CAIC buscava criar as condições e mecanismos para incentivar o surgimento de uma indústria cinematográfica brasileira. O decreto que a criou, “trazia em seu corpo, de forma clara e explícita, regras que definiam um controle ideológico para a produção” (Ramos, op.cit.: 32). Contudo, essa vigilância ideológica não se mostrou, na prática, tão rígida assim. Vários filmes que contaram com a ajuda dessa comissão eram filmes que foram considerados “esquerdistas” e mesmo, posteriormente, censurados pelas autoridades do golpe militar de 1 de abril.
Entre os filmes produzidos com dinheiro da CAIC podemos citar, entre outros, O desafio, de Paulo César Saraceni, O padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, Menino de engenho, de Walter Lima Jr. (ibid.:171). Além disso, premiou Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, Garrinhcha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade e Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni.
Este relacionamento com o Estado pode ser encarado como um reconhecimento, por parte desse, de que os cinemanovistas conseguiram afirmar-se enquanto uma elite intelectual legítima, digna interlocutora do Estado e dos setores conservadores. Isto vem corroborar aquilo que Philippe Bradfer chama de “crença” popularmente difundida, segundo a qual “aquele que, através de sua atividade intelectual (...) adquire um certo prestígio, possui, um julgamento abalizado das questões políticas” (Bradfer, 1992: 47). Nunca os cineastas brasileiros alcançaram tanto respeito e foram ouvidos tão amplamente por setores importantes sociedade brasileira quanto neste período.
5 - Ganhos e perdas.
Em quatorze anos (1950/1964) formou-se no Brasil, mais intensamente no Rio de Janeiro, uma geração cinematográfica. Oriunda, em sua maioria, dos meios universitários, dedicou-se à crítica, à teoria cinematográfica e à produção de filmes, na bitola que fosse possível. Desde o início era possível perceber-se em suas discussões uma enorme vontade de “botar a mão na massa”, de produzir filmes compromissados com a realidade cultural brasileira. Esse grupo utilizou todas as armas disponíveis para alcançar seu intento. Sua grande união em torno de princípios gerais - não se pode falar de um programa de ação devido à grande heterogeneidade entre membros que compunham esse grupo - foi fundamental para o enfrentamento dos “inimigos”, fossem eles parcelas da crítica nacional de cinema encasteladas na grande imprensa ou representantes de um modelo de cinema que produzia os filmes brasileiros de então: chanchadas e produções da Vera Cruz.
As críticas à Vera Cruz e à chanchada funcionaram como um instrumento de retórica utilizado para marcar posição contra tudo o que fôra feito em cinema no Brasil até então e para definir as linhas gerais que todos do Cinema Novo deveriam seguir.
Nesses quatorze anos os cinemanovistas conseguiram criar um movimento que contou com uma produção intelectual (livros, artigos etc.) e cinematográfica constante. Obtiveram sucesso de crítica e conseguiram incluir a cinematografia brasileira entre as mais importantes do mundo. Também foram reconhecidos como um grupo social com voz ativa e com cacife para se tornar um importante interlocutor do governo e de setores da burguesia brasileira.
Outro sucesso do Cinema Novo foi criar uma incipiente indústria cinematográfica no país. Laboratórios cinematográficos foram montados ou modernizados; formou-se uma mão de obra especializada, ainda que pequena, baseada numa autodidática de grupo (os cinemanovistas praticavam o que liam nos livros enquanto faziam seus filmes, uns ajudando os outros). Órgãos e instituições financeiras, estatais ou privadas, que davam ajuda ao desenvolvimento da indústria cinematográfica no Brasil surgiram graças às pressões e às articulações políticas desse grupo junto a setores sociais influentes.
Outra vitória foi o desenvolvimento de uma linha de pesquisa de linguagem cinematográfica que passou a influenciar, positiva ou negativamente, toda a produção cinematográfica feita no Brasil após os anos 60. Segundo David Neves, influenciou até os jovens cineastas alemães desse mesmo período (Neves, E, 1993).
Entretanto, alguns fatores prejudicaram o desenvolvimento do Cinema Novo. O primeiro foi não ter conseguido desvencilhar-se da velha tradição messiânica do intelectual nacionalista brasileiro que encara o povo como algo sem vontade própria e que deve ser conduzido até a sua salvação. O Cinema Novo também se colocou como o dono da verdade, como aquele que tinha as melhores propostas para o país, porque fruto de um elaborado raciocínio intelectual, e as propostas mais sinceras, porque autenticamente populares e nacionalistas. O povo era apenas um elemento a ser moldado ou, como se dizia na época, conscientizado.
O segundo fator prejudicial foi não ter elaborado uma política de distribuição para seu produto. Esse erro é tão mais importante porque foi o mesmo cometido pela Vera Cruz e que já fôra diagnosticado por Alex Viany, um dos críticos e diretores de cinema mais respeitados pelos cinemanovistas. Só depois, por volta de 1965, é que eles se preocuparam de fato com esse problema e criaram a distribuidora de filmes Difilm que, entretanto, teve vida curta.
Um terceiro fator foi o grupo ter encarado o grande público de uma maneira “preconceituosa”. Embora os cinemanovistas tenham criado um pequeno público próprio através dos cine-clubes, o grande público lhes permaneceu inacessível, até este período, pelo menos. Muito por sua própria culpa já que se esqueceram, também, de traçar uma política de atração de espectadores. Isso pode ser encarado como uma outra influência da sua atuação messiânica: o povo deveria, apenas, fornecer os elementos primários básicos que seriam retrabalhados por esses artistas. Com isso, sua relação com o público tornou-se uma rua de mão única onde não havia trocas e interações entre os cinemanovistas e o povo. Foi um relacionamento viciado. Intelectuais “bondosos” faziam filmes para o povo, a quem só restava aceitá-los, ou não. Se o grande público não gostasse dos filmes, o problema não estava na linguagem, nem na estrutura de produção, distribuição e exibição, mas na pouca conscientização política e no ínfimo desenvolvimento cultural dos espectadores.
Houve uma querela entre Flávio Moreira da Costa e David Neves, narrada pelo primeiro, que ilustra bem essa dificuldade de relacionamento entre o Cinema Novo e o público. Em um dos capítulos do seu livro, David Neves afirma que o grande problema do Cinema Novo é o público (Neves, 1966). Flávio Moreira da Costa retruca dizendo que era o contrário: o problema seria a conquista desse público (Costa, E, 1993). De qualquer maneira, houve, de fato, uma grande lacuna entre o Cinema Novo o público brasileiro.
[1] Jean-Paul Sartre, citado por Daniel Pécaut (Pécaut, 1990:5).
2 Sobre este tema, remetemos, entre várias outras obras, a Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Cardoso e Faletto, 1984), Celso Furtado (Furtado, 1967), Hélio Jaguaribe (Jaguaribe, 1962 e 1967) e Maria da Conceição Tavares (Tavares, 1982).
3 Para um apanhado geral dessas teses, remetemos ao número especial sobre o Brasil da revista Les temps modernes (número 257, outubro de 1967).
4 Simon Schwartzman, citado por Daniel Pécaut (Pécaut, op.cit.:109).
5 Para maiores esclarecimentos, remetemos, entre outros, a Hélio Jaguaribe (Jaguaribe, 1979), Daniel Pécaut (Pécaut, op.cit.), Nelson Werneck Sodré (Sodré, 1978) e Caio Navarro de Toledo (Toledo, 1978).
6 Para maiores dados sobre o CPC ver, entre vários outros, Heloisa Buarque de Hollanda (Buarque de Hollanda, 1981) e Renato Ortiz (Ortiz, 1986).
7 Frantz Fanon, citado por Ismail Xavier (Xavier, 1983:154).
8 Entrevista de Débora Zampari, esposa de Franco Zampari, fundador da Vera Cruz, à Maria Rita Galvão (Galvão, 1981).
9 Para maiores informações sobre a Vera Cruz, remetemos Alberto Cavalcanti (Cavalcanti, 1976), à obra fundamental de Maria Rita Galvão (Galvão, 1981), a Alex Viany (Viany, 1987) e a Glauber Rocha (Rocha, 1963).
10 As citações onde aparecem o sobrenome, a letra E maiúscula e o ano referem-se a entrevistas realizadas pelo autor.
11 Cf. Sérgio Augusto (Augusto, 1989) e Rosângela de Oliveira Dias (Dias, 1993).
12 Para um maior aprofundamento no tema chanchada, remetemos, entre inúmeras outras obras, àquelas de Rosângela de Oliveira Dias (Dias, op.cit.), que pode indicar extensa bibliografia, e Sérgio Augusto (Augusto, 1989), que contém a ficha técnica de todos os filmes.
13 Político populista que, acompanhado sempre de sua metralhadora de “estimação” (a “Lurdinha”) a tiracolo, mandava na Baixada Fluminense, principalmente em Duque de Caxias, dos anos 50 até o golpe militar.
14 Para uma apreciação da composição demográfica e do público de cinema no Brasil dos anos 50 e 60, remetemos, entre outros, à Rosângela de Oliveira Dias (Dias, op.cit.).
15 Para maiores informações sobre a CAIC, ver, entre outros, David Neves (Neves, 1963), José Mário Ortiz Ramos (Ramos, 1983) e Paulo César Saraceni (Saraceni, 1993).
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C) ENTREVISTAS (em ordem cronológica):
COSTA, Flávio Moreira da - 01/02/1993.
CARNEIRO, Mário - 05/03/1993.
COUTINHO, Eduardo - 07/05/1993.
VIANNA, Zelito - 16/08/1993.
NEVES, David - 06/10 1993.
SARACENI, Paulo César - 06/10/1993.
DIEGUES, Carlos (Cacá) - 30/11/1993.
CAPOVILLA, Maurice - 22/12/1993.
LIMA JUNIOR, Walter - 09/02/1994.
Resumo: este artigo procura investigar a cultura política brasileira e, principalmente, do Rio de Janeiro sob a qual se formou a geração que participou do movimento político-cultural conhecido como Cinema Novo, cujos principais elementos podem ser percebidos nas obras desse movimento.
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