O grande problema de Ensaio sobre a cegueira reside na complicada "transfer" de uma obra literária para o cinema. Já se disse que o romance filmado é uma utopia, porque a literatura tem uma linguagem (os signos gráficos) e o cinema, outra (os signos icônicos). Geralmente, quando um realizador faz uma versão de um livro para a linguagem cinematográfica somente aproveita a trama, os personagens e as situações. O que faz o valor de uma obra literária é o estilo de escritor, a maneira pela qual ele manipula a sintaxe de sua linguagem. O mesmo pode ser aplicado ao cinema. O que faz o valor de uma obra cinematográfica é a maneira pela qual o cineasta articula os elementos de sua linguagem em função da explicitação temática.
Hitchcock disse a Truffaut, na célebre entrevista imortalizada em livro, que não gostava de adaptar livros famosos para o cinema, dando preferência a escritos desconhecidos publicados em magazines. Porque, disse o mestre inventor de fórmulas, caso quisesse, por exemplo, adaptar Crime e castigo, de Dostoievsky, o filme teria, para conter tudo, uma duração excessiva e impraticável de mais de 200 horas.
Quantos crimes já não se cometeram contra escritores famosos pela teimosia em adaptá-los para as telas? Recentemente, o Canal Brasil exibiu Capitu, versão cinematográfica de Dom Casmurro "praticada" por Paulo César Saraceni, cujo resultado é um massacre completo na poética de Machado de Assis. E o pior de tudo é que o roteiro foi escrito pelo renomado crítico e escritor Paulo Emílio Salles Gomes e sua esposa, na época, Lygia Fagundes Telles. O que se vê na tela é algo deplorável, e Machado, se pudesse, sob a terra que lhe foi leve, tomar conhecimento do "assassinato", remexer-se-ia convulsivamente em seu túmulo
Como definiu com propriedade o crítico Carlos Alberto Mattos no site "Críticos.Com", o que falta a Ensaio sobre a cegueira é a "dicção" de José Saramago, porque Fernando Meirelles somente aproveitou a trama, os personagens, as situações. E o mais importante se encontra nas reflexões feitas pela sintaxe posta em prática pelo escritor português detentor de um Prêmio Nobel de Literatura.
É o caso de se perguntar: onde está o estilo de Saramago em Ensaio sobre a cegueira? Em lugar nenhum da narrativa do filme de Meirelles, que procura disfarçar este "vácuo" pela diversidade de luzes e cores e pela matiz da fotografia, por um certo virtuosismo nas "tomadas de vistas". Se Saramago é revelador em sua fábula escrita, esta mesma fábula, "transcrita" nas imagens em movimento, não alcança a dimensão do livro. No cinema, Blindness fica apenas como um pálido reflexo deste, ainda que uma produção bem cuidada e com bons intérpretes, além da habitual competência artesanal de Fernando Meirelles.
O romance aborda o surgimento de uma praga repentina numa cidade indeterminada, que se manifesta pela cegueira desenfreada em todos os seus habitantes. Enquanto os afetados pela epidemia são colocados em quarentena, em condições desumanas, e os serviços estatais começam a falhar, a trama segue a mulher de um médico, a única pessoa que não é afetada pela doença que cega todos os outros. E esta mulher é interpretada por Julianne Moore. Mais do que olhar, diz Saramago, é preciso reparar nos outros.
Meirelles captou Saramago e o "traduz" por meio de uma outra linguagem, obscurecendo, com isso, o que há de fundamental na obra escrita, qual seja a sua própria escrita ou o modo pelo qual Saramago desenvolve a fábula sintaticamente na língua portuguesa. Mas ainda que o romance filmado seja uma utopia, há casos em que a "escrita" literária se adapta à "escrita" cinematográfica, como foi o caso de Vidas secas, de Graciliano Ramos, que, filmado por Nelson Pereira dos Santos, o filme como que se "ajusta" aos predicados do livro. Também, é bom observar, o romance do autor de São Bernardo é quase um roteiro, pois se presta muito à pré-visualização. Não é o caso, contudo, de Ensaio sobre a cegueira, onde se encontra um modo "escritural" impenetrável, bem ao gosto do Nobel de Literatura, cujos livros são difíceis de penetrar, possuidores de uma "fluência" que perturba e instiga o leitor
Os recursos para "driblar" a ausência do estilo de Saramago (o mesmo aconteceu com a versão de O nome da rosa, de Umberto Eco, cuja versão não oferece os sábios ensinamentos deste sobre a Idade Média, sendo o filme transformado num "thriller" medieval, com "gosto" e "cheiro" da Idade retratada), e, em decorrência, da impotência do cinema em fazer uma transferência satisfatória, estão na eficiência da iluminação de César Charlone e na montagem ajustada de Daniel Rezende, e na "procissão" de intérpretes vindos de diferentes partes do mundo: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga (sobrinha de "Gabriela"), Don McKellar (o roteirista do filme que faz o ladrão de carro), Danny Glover, Gael Garcia Bernal, Douglas Silva, Antonio Fragoso, entre outros
Vino do cinema publicitário, Meirelles tem uma dinâmica para o desenvolvimento narrativo, que se estabelece mais na noção do corte que alavanca este do que no sentido de um "conceito de duração" dos planos mais aprimorados. Seu cinema, portanto, atende às solicitações da "velocidade" que é requerida das obras contemporâneas. Cidade de Deus (2002) é o paradigma dessa dinâmica, desenvolvida também em O jardineiro fiel (The constant garden, 2005). Em 1998, tentou revitalizar o filme infantil com O menino maluquinho 2: a aventura, com roteiro da parceira de Walter Salles, Daniela Thomas. Mas a "construção" do cineasta, ainda que de forma indefinida, se dá com Domésticas (2001).
Sentado ao lado de Meirelles durante a projeção em Cannes de Ensaio sobre a cegueira, José Saramago, emocionando o diretor, disse a ele que gostou muito do filme. Mas o próprio Meirelles, insatisfeito com o resultado, com a narração redundante, modificou o filme depois para lançá-lo comercialmente.
O cinema ainda está sem créditos com José Saramago. E talvez fique para sempre, pois impenetrável nos seus signos gráficos, é muito difícil que o discurso cinematográfico, icônico por natureza, lhe esteja à altura. O artesanato de Fernando Meirelles não consegue atingir a fabulação da obra literária, a resultar num filme difuso, cuja luz tenta fazer "ver" o que os cegos não podem "olhar".
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