quarta-feira, 30 de setembro de 2009

PAU BRASIL

Por André Setaro

O cinema baiano alcança, com Pau Brasil, de Fernando Belens, a sua maturidade. Um amadurecimento que se cristaliza em suas imagens não apenas pela qualidade técnica que possui, mas, sobretudo, pela maneira com que o realizador aborda o tema, cujo tratamento revela um olhar original sobre a vida de homens e mulheres que vivem no sertão. O ponto de vista adotado por Belens na descrição de suas existências não é condescendente com elas. Foge, por exemplo, da maneira pela qual os sertanejos são sempre tratados pelo cinema brasileiro, e, nesta sua visão insólita e nada complacente, sem piedade, poder-se-ia dizer, acha-se, durante o desenvolvimento da narrativa, uma espécie de borbulhar que a permeia para a explosão exorcística final.

Pau Brasil é baseado no livro homônimo de Dinorah do Valle, que recebeu, em Havana, o prêmio Casa de las Americas. A autora participou também da gestação do roteiro, mas não pôde vê-lo concretizado porque morreu antes das filmagens. Pode-se observar uma afinidade eletiva entre a escrita de Dinorah do Valle e o pensamento belensiano sobre a vida.

Impressiona a qualidade técnica de Pau Brasil, sua montagem exata, o sentido de duração preciso das tomadas. Não seria exagero dizer que, em Pau Brasil, há uma contenção quase bressoniana na exposição das chagas sociais e existenciais. O cinema baiano, força dizer, nunca tinha alcançado, em sua luminosa trajetória, o grau de maturidade temática e estilística que se pode encontrar no filme de Fernando Belens. Em Pau Brasil, a técnica (perfeita) se encontra com a linguagem para fazer emergir uma estética.

O sentido da duração das tomadas, vale repetir, conjuga-se com o sentido dos enquadramentos para que o filme se estruture narrativamente em consonância com o que se quer dizer. O que está dito, portanto, nas imagens de Pau Brasil, está dito de uma maneira escritural que permite a associação equilibrada, como todo bom filme que se preze, entre a narrativa e a fábula.

Autor, porque se vista a sua filmografia há, nela, constantes temáticas e estilísticas, Fernando Belens, desde os seus experimentos insólitos em Super 8, já demonstrava uma visão particular do mundo que o cerca, um olhar arguto, anárquico por vezes, não destituído, no entanto, de originalidade na representação do que se chama real.

As imagens de Experiência I (e as outras, transformadas), de Anil, de Europa, França e Bahia, de Heteros, a comédia, de Pixaim, entre outros, estão inseridas no corpus de Pau Brasil. O que significa dizer que Belens é um autor, um realizador que tem, como queria François Truffaut, uma visão de cinema e uma visão de mundo. Neste particular, faz um cinema dilacerante, cortante, que não admite a compaixão, mas que luta pela emergência da perplexidade diante das contradições da realidade.

Uma compaixão que, por exemplo, não existe em relação aos personagens miseráveis do filme. Inclusive Belens coloca a intolerância, o preconceito, a hipocrisia, dentro do contexto da história, que trata da rivalidade entre duas famílias pobres que sobrevivem num ambiente hostil. A intolerância, para Belens, não é uma questão de classe, como a é para muitos, mas uma questão da necessidade de o homem se transformar, uma questão da natureza humana.

Duas famílias vivem em casas rudes, toscas, uma em frente da outra. Numa delas, um homem (Bertrand Duarte - sempre inexcedível) mora com uma mulher e a deixa amar qualquer tipo que chegue à sua porta, principalmente caminhoneiros, que são seduzidos pela sua maneira fogosa de ser. Mas o personagem não se importa e é feliz e carinhoso e, ainda, abriga no seu seio familiar um outro homem que aparece numa noite a pedir asilo em sua casa. O casal tem um filho, maltratado pela coletividade, que se tranca em si mesmo. Uma espécie assim de As duas faces da felicidade (Le bonheur, 1966), de Agnes Varda, às avessas. Mas o homem interpretado por Bertrand guarda um segredo, que se revela no final.

Do outro lado da rua, um outro homem (Oswaldo Mil), casado, com duas filhas, vive a discursar da porta de sua casa sobre a promiscuidade existente na casa vizinha. Suas duas filhas adolescentes vivem sob o regime do chicote, e a mulher, sempre calada, sujeita-se à sua condição, As duas meninas, porém, não possuem a mesma perspectiva de vida. Uma pretende o gozo da vida, a plenitude carnal, enquanto a outra prefere o celibato e acaba por entrar no claustro de um convento.

Como fio condutor, a exemplo de um personagem de tragédia grega, uma mulher negra, desgrenhada, é o alter ego da coletividade. O filme começa com o garoto, filho do casal da residência dita promíscua, que anda por uma paisagem arenosa. As primeiras imagens de Pau Brasil mostram em seguida uma árvore imensa, o título do filme, e a negra que profere palavras premonitórias, assim como no final, quando caminha solitária por uma estrada que parece não ter fim.

A exposição dos personagens e das situações dá lugar, a partir de certo momento, a uma explosão de conflitos entre as duas famílias. E é neste conflito que se dá o exorcismo, a revelação, e o desfecho exasperante de Pau Brasil. Belens, neste retrato pungente, mostra com argúcia de bom cineasta que a condição humana é contraditória e complexa.

Ponto máximo para a fotografia de Hamilton Oliveira, para a montagem de André Bendocchi Alves, elementos que proporcionam o estabelecimento de uma mise-en-scène dotada de eficiência dramática e de um ritmo que cativa pela conjugação harmoniosa dos elementos da fabulação.

PAU BRASIL Brasil / Alemanha. 2009. Produção e Direção: Fernando Belens. Roteiro: Fernando Belens e Dinorah do Valle. Montagem: André Bendocchi-Alves. Som: Nicolas Hallet. Fotografia: Hamilton Oliveira. Trilha Sonora: Bira Reis. Direção de Arte: Moacyr Gramacho. Produção Executiva: Luciano Floquet e Sylvia Abreu. Produção: Sylvia Abreu e Pola Ribeiro. Elenco: Bertrand Duarte, Oswaldo Mil, Fernanda Paquelet, Arany Santana, Fernanda Belling, Milena Flick, Edlo Mendes, Rita Brandi. Filme realizado com recurso de edital patrocinado pelo Governo do Estado da Bahia. O filme é Baseado em livro homônimo de Dinorah do Valle, premiado em concurso cubano da Casa de las Américas

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