José Saramago, autor laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, vetou inúmeras tentativas de adaptação de sua obra Ensaio Sobre a Cegueira, alegando que "o cinema destrói a imaginação".
O autor português não deixa de ter razão: ao assistir a uma adaptação de qualquer obra para as telas é inevitável que as imagens que você criou em sua mente sob a condução do texto deixem de existir, substituídas pela "realidade" filmada.
Por outro lado, é tentador observar o choque de criações, de visões, entre dois tipos de criadores - o contador de histórias textual e o visual. Ainda mais quando se trata de um cineasta que não teme o estilo e sabe usá-lo, como Fernando Meirelles (Cidade de Deus). Assim, gosto de acreditar que esse foi um dos motivos pelos quais Saramago finalmente cedeu: a curiosidade de ver outro grande talento dando sua visão particular a uma obra pré-existente.
Meirelles não decepciona. O filme Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness, 2008) tem visual esmerado, resultado do que aparentam ter sido muitas (e longas) conversas sobre como se representa a cegueira para o público, capaz de ver. A resposta vem em três frentes. Além da direção de Meirelles há a soberba fotografia de César Charlone (que além dos dois mais recentes filmes de Meirelles fez também O Banheiro do Papa) e a edição irretocável e inspiradíssima de Daniel Rezende (Cidade de Deus, Tropa de Elite).
A trama narra uma inexplicável epidemia de cegueira e se passa em grande parte dentro de uma estrutura de confinamento para os que perderam a visão. Nos claustrofóbicos interiores, o Ensaio Sobre a Cegueira do trio vale-se de superexposição, foco e abstracionismo sensível, mas usando apenas variações tonais dessaturadas que levam ao branco, com surpreendente resultado. Nos vazios exteriores do terceiro ato, um amálgama urbano formado por partes de São Paulo e Montevidéu, encontramos outro tipo de contraste e, enfim, o preto - na seqüência mais "cega" do filme, excepcional.
Em uma nota menos positiva, o livro é mais sujo, chafurda, literalmente, mais em excrementos, em degradação. Mas, convenhamos, o filme nem poderia ser tão grotesco. Um violento estupro coletivo, uma imundície física e psicológica, já é suficientemente difícil de ser imaginado. Não precisa de representação gráfica explícita. De qualquer maneira, as situações não são minimizadas, mas sua representação emprega a cinematografia para ficar menos agressiva.
Técnica à parte, o roteiro adaptado por Don McKellar (que também atua como o Ladrão) é bem-sucedido ao manter os principais elementos do difícil livro intactos, sem escorregar para o horror comercial, uma das maiores preocupações de Saramago. Seria muito fácil transformar o livro em um filme de zumbi convencional, já que a obra original, como nas melhores produções do gênio da metáfora social George A. Romero, usa o inexplicável para experimentar com as reações humanas ante a falta de ordem. Ensaio sobre a Cegueira parte dos mesmos princípios, mas oferece vários outros - e o ótimo elenco, liderado por Julianne Moore (a Mulher do Médico) e Mark Ruffalo (o Médico), cuida para deixar a desumanização sob controle. Não há monstros ali, apenas pessoas e seus extremos.
Cabe aqui também uma última defesa do filme, que dividiu a crítica e gerou algumas pérolas incompreensíveis de gente normalmente bastante coerente (o que, particularmente, acho formidável). Para ficar em apenas um caso, um crítico britânico escreveu "não há espaço para a meditação, o que é um desastre para um fime cuja história pede que a sociedade recoste-se, respire e 'veja' o que está fazendo consigo mesma". Bobagem - o tempo de recostar-se já passou. Enérgico, Meirelles joga a merda na cara, e que choraminguem os modorrentos.
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