Beto Magno
Por Maurício Cardoso*
Em junho de 1961, Glauber Rocha enviou, de Salvador, uma carta para três cineastas que moravam no Rio: Gustavo Dahl, Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade. Ele comemorava a repercussão dos primeiros curtas-metragens, dava sugestões e conselhos e pautava as tarefas do “grupo”: “Precisamos trabalhar muito: e no Brasil. Nosso grupo tem de ser um verdadeiro motor. Não podemos parar, fazendo filmes, discutindo e escrevendo. O Jornal do Brasil vai acabar o Suplemento [Dominical], o que vai me deixar sem armas. Mas consigo outro jornal. É importante que Gustavo escreva para o Estadão. Não pode parar. Mais tarde faremos uma revista”.
Na carta, são notórios o espírito de luta, o esforço de coesão do grupo e a definição tática de cada movimento: escrever nos jornais de circulação nacional, produzir filmes, ocupar posições estratégicas no cenário cultural. Episódios dessa natureza, envolvendo ações e ideais de Glauber, povoam a formação do cinema novo.
É água corrente afirmar que o cinema novo teve em Glauber sua liderança mais saliente e importante; via de regra, a fama explica-se pela dupla fascinação de sua personalidade magnética e de seus filmes vertiginosos. Houve, no entanto, um esforço colossal empreendido por ele num extenso campo de guerra cultural que envolvia a produção e distribuição de filmes, a elaboração obsessiva de textos na imprensa, a publicação de livros e os contatos e viagens internacionais. Tudo catalisado pela figura intempestiva de Glauber, que não era apenas gênio criativo, mas trabalhador incansável que se envolvia em todas as frentes de batalha e não aceitava derrotas.
Como salientou Ivana Bentes, na introdução de Cartas ao Mundo (Companhia das Letras, 1997), Glauber manteve uma troca de cartas compulsiva e sistemática que revela, entre outras coisas, a geografia do cinema novo. Sua rede epistolar era consistente e norteava não apenas suas ações, mas garantia um intercâmbio de informações e afetos que sedimentaram as relações entre os novos cineastas.
Reinventar a indústria cinematográfica
A memória histórica sobre o cinema novo e, particularmente, sobre Glauber costuma dar créditos à inovação estética e lamentar o fracasso econômico dos jovens cineastas: filmes herméticos, sem comunicação com o grande público, num artesanato precário que explicaria, inclusive, o esgotamento daquela experiência, em fins dos anos 1960.
O dilema, no entanto, era maior e mais complexo. Ainda em meados dos anos 1960, os realizadores começam a se debater com o problema do público e da viabilidade econômica de seus filmes. Glauber manteve o assunto na pauta desde os primeiros tempos, atuando em três direções: a primeira, mantendo a convicção de que uma nova linguagem exigia uma nova pedagogia das imagens, capaz de retirar o espectador da passividade do cinema norte-americano; a segunda, defendendo uma política de Estado que protegesse o cinema nacional contra a voracidade de Hollywood; e, finalmente, uma terceira frente que o conduzia às estratégias no mercado cinematográfico.
Glauber tinha uma ampla visão das mudanças necessárias à implantação de uma política cinematográfica que levasse o setor à industrialização e, portanto, à independência econômica e ideológica em relação aos países colonizadores. Era preciso criar, afirmava, as bases de uma cultura cinematográfica investindo em cultura: criar ou ampliar cinematecas, escolas de cinema, cineclubes, congressos e festivais, editar livros e revistas, aperfeiçoar a legislação, investir na diversidade de obras (grandes produções, filmes médios, obras experimentais) e produzir incessantemente.
O rendimento maior de sua ação, no entanto, estava fincado na criação de empresas que viabilizassem os negócios do cinema novo e não apenas os seus filmes. A partir de 1965, a produtora Mapa Filmes e, no ano seguinte, a distribuidora Difilm cumpriam papel de aglutinar cineastas e produtores afinados com o mesmo projeto estético. Glauber não foi apenas sócio-fundador, mas combatente de primeira hora nas duas iniciativas. Era um produtor em sentido amplo: chegava cedo ao escritório da Mapa, participava das decisões cotidianas, fazia contatos telefônicos, discutia roteiros com os colegas, metia o caneco até mesmo na elaboração dos cartazes, montava esquemas de publicidade para cada filme.
Obviamente, ele não tinha ilusões de que faria fortuna, mas sabia que era perfeitamente possível, e necessário, que os novos cineastas fossem capazes de pagar as contas. O sentido prático o impulsionava a alimentar um esquema comercial que deveria pôr em funcionamento um círculo virtuoso de produção e distribuição sob a chancela do cinema novo. Complexa síntese entre a projeção utópica e visionária que ele construía sobre o futuro do cinema nacional e uma capacidade de trabalho e sistematização das ideias.
Na carpintaria da crítica de cinema
No início da década de 1960, ele se instalou no Rio, quartel-general do movimento e de suas andanças pelo país e pelo mundo. Quando chegou, tinha no currículo Barravento e os artigos no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que lhe renderam admiração e repulsa. Ele já conhecia Nelson Pereira dos Santos e Saraceni, tinha costurado boas amizades ainda em Salvador, enquanto outras nasciam nos bares e eventos que reuniam críticos, cineastas, produtores e outros bichos da fauna cultural carioca. Havia uma atmosfera política favorável, que parecia trazer ventos de mudança e provocava em muitos um entusiasmo revolucionário e, noutros, a sensatez reformista.
Esse oxigênio mental, para lembrar a expressão de Elias Thomé Saliba, não marcou apenas os filmes lançados antes do golpe de 1964, mas deu vida própria à circulação de ideias novas e facilitou a implosão do velho edifício do “cinemão” que se praticava no país. Glauber traduziu, em sua escrita, a urgência do tempo: o texto direto, o corte seco de sua prosa, marcava diferenças sem meio-tons e definia os termos da equação.
Na introdução de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, publicado em 1963, Glauber bate duro nas condições materiais da cultura no país:
“A cultura cinematográfica brasileira é precária e marginal: existem os cineclubes e duas cinematecas, inexiste uma revista de importância informativa, crítica ou teórica. (…) Cada crítico é uma ilha; não existe pensamento cinematográfico brasileiro e justamente por isto não se definem os cineastas, fontes isoladas em intenções e confusões, algumas autênticas, outras desonestas.”
No livro e nos artigos para a imprensa, o cineasta baiano desenhava uma cartografia decisiva para marcar posições e estabelecer limites: o cinema novo, em síntese, inspirava-se na tradição do cineasta Humberto Mauro, combatia o cinema industrial da Vera Cruz em nome do cinema de autor, eivado pela experiência histórica do país. Entravam no time os críticos Jean-Claude Bernardet, Paulo Emílio Salles Gomes e Alex Viany, além dos cineastas Nelson Pereira, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Joaquim Pedro e Saraceni, entre outros. Em compensação, do outro lado da arena, Glauber lançava, sem tergiversar, os “outros”: Rubem Biáfora, Ely Azeredo, Walter Hugo Khouri, Flávio Tambelini, Anselmo Duarte e Lima Barreto.
No prefácio à reedição de Revisão Crítica (Cosac Naify, 2003), Ismail Xavier aponta uma tensão permanente na prosa glauberiana entre a análise do estilo (filme a filme) e o balanço histórico. Essa costura de método crítico sofisticado e inserção nos debates da cultura brasileira conferiu à produção escrita de Glauber um desempenho notório, a despeito das animosidades que suscitava. Por isso, seus textos não eram apenas diagnósticos do campo cinematográfico, mas proposições que definiam os rumos do próprio cinema novo.
A diplomacia intempestiva de Glauber
Desde fins dos anos 1950, os cinemanovistas começaram a circular no mundo com seus primeiros filmes na bagagem. A partir de 1963, Glauber passou a viajar com frequência para os países latino-americanos e para a Europa, fortalecendo o contato com cineastas, críticos e produtores. Ele participava de congressos e festivais de cinema, escrevia e dava entrevistas para inúmeras revistas especializadas, divulgava e vendia seus filmes e dos seus companheiros de cinema, articulando coproduções.
Ele construiu sistematicamente sua presença no exterior, com estratégias compartilhadas com outros diretores do cinema novo, convicto de que essas conexões tinham um papel imprescindível na consolidação e na hegemonia do grupo. A leitura da correspondência, especialmente entre Glauber, Dahl e Diegues, sugere uma arquitetura rigorosa dos filmes que deveriam concorrer no calendário de festivais internacionais.
Em 1962, Barravento recebeu o prêmio Opera Prima do Festival de Cinema de Karlovy-Vary, na Tchecoslováquia; no ano seguinte, Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1963) e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1963) concorreram em vários eventos europeus e latino-americanos. Em 1964 e 1965, Deus e o Diabo na Terra do Sol participou do Festival de Cannes, recebeu prêmios na Itália, no México e na Argentina, e contribuiu decisivamente para consagrar o cinema novo no solo sagrado das grandes cinematografias modernas.
Em 1965, a 5ª Resenha de Cinema Latino-americano, organizada pelo Columbianum, em Veneza, e dedicada ao cinema novo, consolidou o interesse europeu pelos filmes e pelas ideias dos novos diretores brasileiros. O clássico texto-manifesto “Estética da Fome” foi apresentado lá pela primeira vez. Em meados da década de 1960, havia entrevistas e artigos de Glauber, Joaquim Pedro, Diegues e Nelson espalhados em revistas francesas, italianas e cubanas.
A originalidade da linguagem do cinema novo impressionava a crítica europeia, enquanto os cineastas empolgavam o público dos festivais, cujas altas temperaturas propiciavam o debate eloquente e incendiário que Glauber conduzia com sua liderança. Ele incorporava os amigos, citava seus filmes e batia na tecla da “geração”.
Em 1969, no Festival de Cannes, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) recebeu o prêmio de melhor mise-en-scène e consagrou definitivamente o cineasta entre os críticos de cinema na Europa. No mesmo ano, surgiram propostas de produtores espanhóis, italianos e franceses, e Glauber decidiu filmar Der Leone Have Sept Cabeças (O Leão de Sete Cabeças), no Congo, e Cabezas Cortadas, na Espanha.
No início dos anos 1970, no entanto, Glauber já não dispunha do mesmo poder de liderança: os desentendimentos internos ao grupo, as pressões da censura de Estado e do mercado audiovisual (reordenado pelo crescimento da televisão) somados às intervenções vulcânicas do cineasta baiano corroeram a velha corda que manteve unido o espírito de uma geração. Ainda assim, o guerrilheiro mantinha-se no front. Numa carta a Diegues, enviada de Sintra, Portugal, em 1981, quatro meses antes de morrer, Glauber projetava o futuro: “Problemas políticos e psicológicos desagregaram nosso grupo, embora a velha paixão continue subterrânea, esperando o momento de novas explosões.”
Maurício Cardoso é professor de história na USP*
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