Beto Magno
Por André Setaro
Apesar de já ser considerada uma centenária cinematografia, a rigor, no
entanto, ouso dizer que não existe um cinema baiano, mas filmes baianos,
porque, para a existência de um cinema baiano, por exemplo, haveria de
se ter uma produção sistemática e continuada. A questão é polêmica e não
o objetivo desse artigo, porém.
Admitindo-se a hipótese de que o
cinema baiano está a fazer 101 anos, o que se pode dizer é que a
trajetória dessa cinematografia que se quer, às vezes até a fórceps,
baiana, é um itinerário de frustrações e marcada por fases e por
períodos de completa inatividade no plano da criação cinematográfica.
O
ponto de partida se dá com Regatas da Bahia, em 1910, e, a partir de
então, Diomedes Gramacho, José Dias da Costa, Luxardo, entre outros,
fazem filmes documentários que se caracterizam pelo registro de vistas,
acontecimentos sociais, inaugurações disso e daquilo, chegando-se,
mesmo, na segunda década do século passado, ao estabelecimento de
laboratórios que objetivam a feitura de fitas. Mas Gramacho, o principal
documentarista do período, entra em crise depressiva por causa de um
incêndio e joga, em estado de desespero, todo o seu material na Baía de
Todos os Santos.
As pesquisas até agora são infrutíferas em relação
aos filmes porventura produzidos na Bahia antes da década de 1930.
Considera-se como o grande pioneiro do cinema baiano o documentarista
Alexandre Robatto, Filho, cujos registros, quase na sua totalidade, são
recuperados pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Robatto é,
praticamente, o único nome que vigora no panorama cinematográfico
soteropolitano em duas décadas: as de 30 e de 40. A sua obra consiste
basicamente de documentários que registram as exposições de pecuária,
eventos históricos, amenidades sociais etc, a exemplo de A volta de Ruy
(1949), A guerra das boiadas(1946), A chegada de Marta Rocha (1955),
Quatro séculos em desfile (1949), entre muitos outros, como filmes em
8mm que documentam os carnavais baianos nos clubes sociais nos anos 40,
com sabor pitoresco e um resgate memorialista. Seu filme mais bem
acabado, esteticamente, é Entre o mar e o tendal (1953), quando se pode
observar um cuidado na construção de uma estrutura narrativa mais
dinâmica.
Os anos 50 registram o advento do Clube de Cinema da Bahia,
idealizado pelo advogado Walter da Silveira, que congrega, no espírito
de uma velha província, os intelectuais e os universitários de sua
época. O mercado exibidor somente oferece o cinema hollywoodiano, e
Walter da Silveira apresenta a estética eisensteiniana, o expressionismo
alemão, o neorrealismo italiano, o realismo poético francês, a
avant-garde dos anos 20, a escola documentarista inglesa de John
Grierson, Paul Rotha etc. Alguns dos assíduos frequentadores do Clube se
entusiasmam e, assombrados, decidem fazer cinema, a exemplo de Glauber
Rocha, que, no dia da morte de Walter da Silveira (novembro de 1970),
escreve artigo no já extinto Jornal da Bahia para lamentar a perda do
amigo e ressaltar que foi ele quem o fez descobrir o cinema como
expressão de uma arte.
Alguns curtas são feitos nesta década: Um dia
na rampa (1955), de Luis Paulino dos Santos, O pátio e Cruz da praça,
ambos de Glauber Rocha, e Roberto Pires prepara, desde 1956, Redenção, o
primeiro longa baiano, que somente pôde lançar três anos depois, em
1959, porque realizado com poucos recursos e com filmagens aos fins de
semana. Redenção é um acontecimento histórico, e desperta, em outros, a
vontade de estabelecer, na Bahia, uma infra-estrutura cinematográfica
para se ter uma produção sistemática e continuada. Surge, então, o
produtor Rex Schindler que, com outros produtores associados (David
Singer, Braga Netto…), banca a estréia de Glauber Rocha no filme de
longa duração, Barravento (1959), para, a seguir, produzirA grande feira
(1961) e Tocaia no asfalto (1962), ambos dirigidos por Roberto Pires.
Neste momento, princípio da década de 60, é que se dá início ao chamado
Ciclo Baiano de Cinema, a mais importante fase do cinema feito nestas
plagas soteropolitanas, que inclui muitos outros filmes, entre os quais,
O caipora (1963), de Oscar Santana, Sol sobre a lama (1964), de Palma
Netto e Alex Viany, O grito da terra(1964), de Olney São Paulo entre
outros. Todos os filmes citados são bancados por produtores baianos e
podem ser consideradas obras genuinamente baianas.
O surto
underground, que se estabelece a partir de 1968, com influências
marcantes do carro-chefe O bandido da luz vermelha, vem determinar uma
espécie de ruptura com as propostas temáticas do Ciclo Baiano de Cinema,
quer do ponto de vista sintático (da linguagem), quer do ponto de vista
semântico. Entre os filmes dessesurto, destacam-se Meteorango Kid, o
herói intergalático (1969), de André Luiz de Oliveira, Caveira my friend
(1969), de Álvaro Guimarães, A construção da morte (1968), de Orlando
Senna, Voo interrompido (média metragem) e O anjo negro (1972), ambos de
José Umberto, Akpalô (1970), de José Frazão.
A rigor, o cinema
baiano (se assim pode ser chamado) entre os anos 80 e os anos 2000 (com
seu último longa Abrigo nuclear (1980), de Roberto Pires – alguns acham
que é O mágico e o delegado (1983), de Fernando Cony Campos, –
praticamente vive de curtas metragens até que, com o advento dos editais
governamentais, dá-se início à feitura de longas, dando, ao alvorecer
do novo milênio, muitas perspectivas de se por, na praxis, o ato criador
pela imagens em movimento. O filme adventista, inaugural, da nova fase,
a que se denomina Novíssima Onda Baiana, é 3 Histórias da Bahia, que
reúne três curtas: Agora é cinzas, de Sérgio Machado, Diário de um
convento, de Edyala Igresias, e O pai do rock, de José Araripe Jr.
3
Histórias da Bahia é fruto de uma decisão a posteriori, porque
constituído de três curtas independentes eleitos em concurso patrocinado
por edital governamental. A idéia de selecionar um trio de filmes de
pequena duração, para a transformaçãomágica em um longa, proporciona a
ausência de um denominador comum no discurso cinematográfico, como é
praxe em filmes de episódios. O que há, na verdade, é uma inorgânica
estrutura que se compõe de concepções estéticas e linguagens bem
diversas entre si. Enquanto o filme de Sérgio Machado toma como ponto
central a agonia de um Rei Momo provecto, o de Edyala Iglesias tenta
penetrar num diário conventual, e dispõe o tempo cinematográfico numa
linguagem zip. Já O pai do rock é uma reverberação que se pensa
humorística da transformação de músicos em áulicos do axé-music.
Considerando
que o cinema é uma estrutura audiovisual, com um elo sintático (a
linguagem) e um elo semântico (a produção de sentidos), um olhar sobre
os filmes baianos que começam a aparecer a partir dos anos 2000
constata, neles, defeitos estruturais como se não houvesse uma
preocupação com a estrutura narrativa, com a simbiose expressiva entre
os dois elos fundamentais para a urgência criadora. Por outro lado, há
uma quase obsessão por assuntos enraizados, por assim dizer, como o
candomblé, os retratos da gente humilde, o pitoresco, a exploração do
décor. Claro que tais assuntos são importantes, mas precisam de uma nova
abordagem e o que se percebe é uma repetição do clichê na hora de
contemplá-los. É sempre o mesmo discurso cinematográfico que se repete
quase ad infinitum. E uma outra muleta que cai como luva para quem quer
fazer cinema e se dizer cineasta: o documentário musical.
Assim, logo
após a estréia de 3 Histórias da Bahia, Samba Riachão (2001), de Jorge
Alfredo, documentário centrado na figura do sambista Riachão, apesar dos
prêmios conquistados (chega a ganhar, ex-aequo com Lavoura arcaica, de
Luis Fernando Carvalho, o principal prêmio do Festival de Brasília), o
filme, ainda que envolvente pela presença do retratado, tem a pretensão
de “contar a história do samba”, quando deveria se restringir a ser um
registro apenas sobre Riachão.
O problema dos filmes baianos
produzidos nesta década está na estrutura, na inexpressiva simbiose dos
elos sintáticos e semânticos o que sinaliza para um problema de
linguagem. O cinema pernambucano, neste particular, é mais desenvolto, a
exemplo dos filmes de Cláudio Assis (Amarelo manga, O baixio das
bestas), de Lírio Ferreira (O baile perfumado, Árido movie...), entre
outros. Os cineastas de Pernambuco sabem explorar os seus aspectos
culturais mais pungentes com uma linguagem bem de acordo com a expressão
de suas idéias. O baixio das bestas, seco,despojado de figuras
retóricas, é exemplar nesse sentido. Já o cinema baiano puxa mais pelo
folclore (no mau sentido da palavra).
Costa-Gavras disse, no
seminário de cinema de 2005, quando esteve presente em Salvador, que o
cinema nunca pode deixar de ser um espetáculo, tem que,
obrigatoriamente, envolver o espectador, sob pena deste abdicar do que
está a ver. No itinerário longametragista baiano, os filmes se preocupam
mais com o tema nobre, com uma preocupação de realismo social no qual,
muitas vezes, o que se vê são propostas anacrônicas. Esses moços (2006),
de José Araripe Jr, sobre ser um filme sem pretensão, assemelha-se a
uma obra do neorrealismo italiano sem o poder de envolvimento desta
corrente cinematográfica. A busca do realizador é pelo registro da
realidade dos bairros periféricos, envolvendo duas adolescentes e um
velho, párias da vida à procura de uma redenção. De qualquer maneira, há
uma coerência temática, porque um tema centrado nas coisas simples da
vida, e uma tentativa de fazer, delas, a emergência de uma poética que
nunca é encontrada (ver os curtas Mister Abrakadraba, Rádio Gogô, O pai
do rock, este último pertencente a 3 Histórias da Bahia).
Eu me
lembro (2005), de Edgard Navarro, célebre por suas diatribes
superoitistas (O rei do cagaço, Lin e Katazan, Exposed…) e,
principalmente, por O Superoutro (1989), tem diminuído o seu volume de
iconoclastia para uma incursão nos arcanos de sua memória cujo resultado
é uma espécie assim de Amarcord soteropolitano, ainda que desenvolvido
com o humor característico do autor, mas, definitivamente, sem a
virulência dos filmes anteriores e com desequilíbrio estrutural a partir
do meio de sua narrativa. Navarro sabe usar o humor no olhar que
estabelece sobre os comportamentos humanos, revelando-os em suas
ambiguidades, nas situações bizarras observadas, não desprovidas, no
entanto, em Eu me lembro, de humanismo. Há um olhar de piedade sobre a
condição humana, quando em estado de desgraça.
Realizado em 2004, mas
somente exibido em 2008, Cascalho, de Tuna Espinheira, baseado no
romance homônimo de Herberto Salles, é uma prova das dificuldades que
enfrenta o dito cinema baiano. Com o filme pronto, mas sem o Dolby
Stereo, o realizador amarga quatro anos de espera até que consegue um
recurso extra para dotar o seu filme da aplicação sonora sem a qual não
poderia ter exibição no mercado exibidor. A questão maior reside
justamente no tripé produção-distribuição-exibição. O filme baiano,
premiado em editais, consegue, a duras penas, ser realizado, mas nunca é
distribuído no circuito nacional e, quando o é, fica restrito a
pequenas salas e nunca é visto.
O jardim das folhas sagradas, de Pola
Ribeiro, fecha um ciclo, o ciclo de uma geração que começa a fazer
cinema com o boom superoitista. Se o Ciclo Baiano de Cinema tem uma
preocupação com o drama social do homem brasileiro, o cinema que se faz
na Bahia nos anos 2000, e que se está a considerar um ciclo, tem
características muito diversas, pois suas temáticas são díspares,
inexistindo, como naquele, um enfoque social como objetivo precípuo na
abordagem temática. Mas se pode considerar o que se chama Novíssima Onda
como um terceiro ciclo, na verdade, pois há o surto underground, entre
1968 e 1972, cujo denominador comum, um cinema de angústia individual,
de crise de seus autores diante de uma falta de perspectivas, determina
uma abordagem não apenas temática, mas também estilística, a exemplo dos
citados Meteorango Kid, Caveira my Friend, A construção da morte, de
Orlando Senna, que se completa, mas os negativos são destruídos, Akpalô,
de José Frazão e Deolingo Checcucci, O anjo negro, de José Umberto.
O
jardim das folhas sagradas, bem intencionado (embora o inferno está
cheio de boas intenções) sofre de hipertrofia temática e didatismo, com
tom professoral e um tanto politicamente correto. Cascalho é uma
tentativa de trazer para o cinema o romance regionalista de Herberto
Salles, com tropeços narrativos. Pau Brasil dá continuidade à
filmografia de Fernando Beléns (mas fica uma pergunta atrás da orelha:
se realizado por Cláudio Assis, não seria mais louvado e mais
estimado?).
Pau Brasil (2008), de Fernando Beléns, trata a realidade
miserável de duas famílias habitantes de um lugarejo pobre, que se
enfrentam e moram uma em frente da outra. As valências ocultas de cada
personagem emergem no desenrolar da narrativa até um pathos surrealista,
uma explosão de delírio. O cinema belensiano é um cinema quase anêmico
como construção narrativa, mas a secura de sua linguagem funciona dentro
dos parâmetros do olhar grotesco e bizarro que caracteriza a sua
filmografia desde os anos iniciais do Super 8.
O cinema baiano
atual, portanto, é um cinema que se preocupa mais com o oportunismo
temático (inclusive para ganhar nos editais, que funcionam como uma
espécie de autocensura) do que com um cinema de imagens, a considerar a
separação estabelecida por Marcel Martin entre um cinema de imagens e um
cinema figurativo. À exceção de Edgard Navarro, um realizador que se
impõe por um estilo já plasmado, os cineastas baianos se limitam à
figuração de suas idéias, subtraindo-se diante da realidade, fazendo
surgir de sua representação direta e objetiva a significação que querem
obter. Para eles, a elaboração da imagem tem menos importância do que
sua função natural de figuração do real. Estas, por sua vez, necessitam
de uma boa execução para se tornarem convincentes e cinematográficas.
Fonte: André Setaro 20111
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