terça-feira, 2 de agosto de 2022

SARAUS DA MINHA VIDA

  Massimo Ricardo De Benedictis

 

SARAUS DA MINHA VIDA
 
Ricardo De Benedictis
 
Fui criado num ambiente musical e poético, desde criança, em Poções, na Bahia, numa época em que a energia elétrica só existia para nós, a partir das 17,30 – 18 horas, graças ao grupo gerador do grande italiano Bras Labanca e seus auxiliares Leocádio e Nicola Leto.
Em épocas normais (dia-a-dia), às 10:45 o gerador dava um sinal para parar 15 minutos depois. Daí por diante eram os candeeiros ‘aladin’, os fifós a óleo, os candeeiros mais comuns e menos fumacentos, as velas de tamanho variado em seus castiçais e, por fim, o rola-rola para uns, as farras para outros e o sono dos justos, para os pais e avós cansados pela batalha diária da sobrevivência.
Êta, tempo bom!
Os sonhos que nos povoavam o sono até o dia amanhecer e tudo a se renovar, como na véspera havia acontecido através dos anos e anos.
E o tempo era lento.
Sempre aquela expectativa de uma festividade pública, ou mesmo de um aniversário, um casamento, para sairmos daquela mesmice de sempre, mas que era, ao mesmo tempo, uma beleza de vida, tanto em casa como na escola ou nas praças e ruas da cidade de Poções, lá nos idos dos anos 1940, quando tínhamos cerca de 5 mil habitantes na sede municipal.
A principal festa de Poções sempre foi a do nosso Padroeiro, o Divino Espírito Santo, realizada no Pentecostes, que se dá em data móvel, entre os finais de maio/início de junho. A cidade se preparava para a sua festa principal, de um ano para outro, quando a Comissão era criada pela Igreja Católica e um novo grupo ficava encarregado de organizar os festejos – seguindo a parte profana a cargo da Prefeitura da cidade. Uma festa de largo como se faz em toda a Bahia. O ponto culminante é a ‘Chegada da Bandeira’, que se dá no dia de Pentecostes, na sexta-feira, cuja data é móvel, a depender do calendário da Igreja Católica.
SARAUS DA MINHA VIDA
O intuito deste narrativa é falar dos nossos saraus poéticos e musicais, o que faremos ora por diante.
Desde os 5 anos de idade, demonstrava muito interesse pela música e pela leitura, uma vez que fui alfabetizado neste período e me apaixonei pelos livros e pelas figuras que neles continham.
Alguns músicos de Poções vinham à nossa casa ensinar violão às minhas irmãs mais velhas, a exemplo de Deusdeth Fagundes - ex aluno da minha mãe, Profª Nadir Benedictis, que tocava violão e cujos ensinamentos trouxe da sua terra natal, Salinas da Margarida. Minha mãe tocava e cantava e nós fazíamos o mesmo em uma roda na nossa imensa copa/cozinha.
Ela muito me ensinou para dar os primeiros passos no aprendizado. Fazíamos exercícios juntos e eu me sentia o rei da cocada preta. Lembro-me de Deusdeth, o Beth (irmão do grande saxofonista saudoso Arnaldo Fagundes e de dona Lourdes – mãe de Albérico, Valderez e de Vaneide, trazendo seu violão e o violino à tiracolo e essas visitas se davam entre as sete e 10 horas da noite, justamente pelo limite de tempo para termos o ambiente interno e externo iluminado.
Quando fui para Salvador em 1952 já tinha um violão melhor e sempre apostava minhas economias para adquirir um melhor ainda. Épocas de ter dois ou três violões em casa, cada um com a função de servir para o gasto ou para tocar em dupla, ou mesmo para ir aos saraus que agora passo a relembrar.
Walter Carvalho, que é meu irmão de leite, filho de Arlinda e Arthur Carvalho, transformou-se num exímio bandolinista, além do que, tocava violão e cordas em geral. Eu tocava gaita, acordeón e violão, e fazia uns acordes e solos mais lentos no cavaquinho e no bandolim, além disso, desenvolvi muita habilidade na afinação de instrumentos de corda, uma vez que nada escapava do meu afinado ouvido!
As aulas de Canto eram obrigatórias no curso ginasial e eu aproveitei para me engajar nos Corais do ICEIA (Barbalho – Salvador), no início da puberdade, quando minha voz estava mudando a tonalidade, e eu gostava de fazer o ‘baixo’. Os professores sempre me deram oportunidade de fazer guia para os demais, pela minha afinação. Nunca falhava e apontava aquele que estivesse fora da entonação ou do compasso!
A partir daí, conheci Walter Villas-Boas que era pianista, sobrinho da famosa virtuose do piano Odete Villas-Boas e ficávamos nos intervalos das aulas ou na parte da tarde, na sala de música quando ele fazia harmonia ao piano e eu cantava, sempre acompanhado de coleguinhas que ficavam observando e às vezes participando com seu canto dessas aventuras.
Neste período conheci uma grande figura, Armando Paranhos que cantava muito bem e eu o acompanhava ao violão, sempre com repertório variado. Íamos nas férias para Mar Grande e ficávamos hospedados na casa da sua vó, uma velhinha muito legal que nos tratava muito bem e lá em Mar Grande, toda noite fazíamos nossa seresta até a meia-noite. Lembrar também de Haroldo Paranhos, seu irmão que também cantava, mas era menos visto por nós.
Numa dessas ocasiões o Walter convidou-me a ir à sua casa, no Largo da Soledade, que seus irmãos Luiz Villas-Boas e Orlando, juntamente com Wilson Brandão, haviam montado um trio e fomos aos ensaios para conhecer o pessoal, no que fomos muito bem recebidos, formando uma amizade que persiste até os dias atuais. Daí em diante eu passei a levar Walter Carvalho comigo e formamos um quinteto que, a exemplo do trio, levava o nome da esposa de Luiz – Ibiracy. Então formamos o Quinteto Ibiracy, que fazia sucesso por onde passássemos. Cantávamos na Rádio Sociedade da Bahia e na Rádio Excelsior, em programas regulares das emissoras, aos sábados, domingos e quartas-feiras (na Excelsior à noite). Depois em Feira de Santana, Itaberaba, Cachoeira, São Félix Maragogipe, Nazaré, etc
Numa oportunidade, fomos com os Villas-Boas a uma festa de debutante numa mansão em Brotas e lá houve um início de confusão pois a mãe da aniversariante acusou Walter Carvalho de estar passando dos limites com sua filha, uma vez que dançavam agarradinhos. Isso gerou um desentendimento, partiram para a agressão e eu saí na defesa do amigo. Terminou tudo bem, fomos pra casa e dias depois, já de férias escolares, viajamos para Poções onde fizemos algumas apresentações no Cine Santo Antonio e depois no Cine Joia. Alguns dias passados já arriscávamos fazer uma turnê por Jequié, Ubatá, Ipiaú, Itajuípe, Ubaitaba (em cujo local conheci Fernando Lonas, bom cantor e amigo que veio a falecer precocemente), ainda fomos até Itabuna, etc e voltamos para Poções.
Para esta empreitada, contei com a ajuda financeira do meu pai, que me emprestou o dinheiro e colocou-se à disposição para ajudar, como aliás sempre procedeu quando lhe procurava para tais ou quais necessidades.
Em Poções, a seresta corria solta. Eu, Walter Carvalho, Affonso Manta, Carlos Napoli, era música e poesia. Em Salvador, nós tínhamos uns pontos de seresta o Largo do Papagaio, depois de Roma onde havia um Convento de freiras e nós íamos pela rua da praia, nos postávamos em local estratégico e a seresta entrava em cena. As luzes se abriam, as janelas... e aí ficávamos até um pouco mais tarde. Na época a violência era zero. Nunca tivemos um problema de assalto ou coisa parecida. Era realmente um tempo de ouro!
Depois disso conhecemos Geraldo Ribeiro e formamos o Trio Azteca. Mais tarde, Geraldo resolveu fazer carreira solo e nós recebemos Carlos Napoli, nosso companheiro de infância que também morava em Salvador e formamos, com Luiz Villas-Boas e Wilson Brandão, o BAHIA 4, cujo vocal nos levou aos festivais da UFBa, à TV Aratu, Itapoã e aos Clubes e boates para apresentações em finais de semana.
Neste período passei a compor com mais esmero e aproveitei inúmeros poemas de Carlos Napoli para letras das minhas músicas, apesar de ter feito muitas poesias e músicas sozinho.
Nos sábados pela manhã, íamos para o Mercado Modelo e ficávamos farreando no Restaurante de Camafeu de Oxossi. Era uma beleza! Também no Cabeça, próximo ao 2 de Julho, íamos sempre almoçar no restaurante do Moreira, o português, cuja comida era de dar água na boca! Além disso, a Casa da Itália era sempre um dos locais que nos drigíamos para o almoço, ou a noite, bem como o restaurante Bela Napoli, na rua Nova de São Bento! Comidas deliciosas!
VARANDÁ
Passamos a frequentar o Varandá, principal casa noturna da Bahia, cujo proprietário era Sandoval que também era cantor das antigas, desde os tempos de Britinho e seus Stukas. O violonista da casa era João da Matança, grande violeiro e lá tivemos noites memoráveis, bem como no Tuka Pizzaria, na Barra, cujo dono, Rubinho nos recebia às sextas-feiras para um sarau que varava a madrugada! Depois Rubinho passou a Tuka para a Av. Joana Angélica e lá passávamos horas com o poeta Guido Guerra e o pianista Carlos Lacerda. Neste local conhecemos os músicos Luis Vieira, Sérgio Cardoso (filho de Jacob do Bandolim), o ator Benvindo Sequeira, os cantores José Emanoel, Agda, Sylvio Lamegna, produtores musicais, Fernando Santana, Wilson Rangel e tantos outros. Logo após realizamos um espetáculo na Reitoria da UFBa., De DOURIVAL CAYMMI, ASSIS VALENTE E HUMBERTO PORTO ATÉ OS DIAS ATUAIS. Foi um tempo de muito aprendizado e logo depois fui morar no Rio de Janeiro e enfrentar a batalha para gravar meu primeiro compacto na RCA Victor.
Antes de ir para o Rio, conheci o jurista Raul Chaves e sua filha, Ângela Chaves, através de Carlos Napoli. Sobre Vinicius de Moraes, eu tenho uma nota à parte pois nós o levamos para a casa de Raul Chaves com Tokinho e Marília Medaglia.
Carlos Napoli dividiu um ap. no Beco de Maria Paz com Edil Pacheco, vindo daí a amizade com os músicos da época - Tião Motorista, Ederaldo Gentil, Batatinha, Panela, Riachão, Jocaffi.
Nesta época conheci João Só, no Rio Vermelho, cantando ‘Menina da Ladeira’.Oswaldo Fahel e Menina do Rio Vermelho entre muitos outros.
Capinan foi meu colega no ICEIA e era poeta. Não cantava, Carlos Gil Soares era colega de sala da mesma época e inclinou-se para o áudio-visual. Leonel e Reinaldo Nunes, Cid Paraguaçu de Andrade, Carlos Brandi, eram do Teatro.
Prof. Brito, Prof. Varela... esses dois eram professores de disciplina e andavam em nossos calcanhares, sempre a nos olhar de rabicho!
O Prof Adroaldo Ribeiro Costa, era o produtor da Hora da Criança, sempre acompanhado do Maestro Agenor Gomes, e fazia muito sucesso, tendo revelado muitos valores musicais em Salvador.
Sóstrates Gentil, era nosso colega de turma e seguiu o jornalismo, tendo falecido precocemente num acidente quando de férias no Pará.
Jorge Gentil era sambista, primo de Ederaldo e um grande amigo. Ernesto Vale Marques, conheci fazendo Letras na Católica e formamos uma grande e longa amizade. Faleceu precocemente, vítima de enfarte. Carlos Uzel, Horacio Matos Neto, José Leão dentista, Clarindo Luz... Narcisio Patrocínio, Luiz Gonzaga, Wilson Lins (levou-me à casa de Jorge Amado, no Rio Vermelho), Fernando Wellington, excelente declamador da obra de Castro Alves. Temos muitos amigos que participaram conosco dessas aventuras artísticas, entre os quais, Florisvaldo Rodrigues da Silva, Edilson Mendes Santos, Florisvaldo Brito, entre tantos outros amigos.
UMA MEMÓRIA MAIS ANTIGA
NOITES NO VARANDÁ
O Varandá, durante alguns anos foi o bar mais freqüentado pelos músicos e poetas de Salvador.
Sua localização era privilegiada.Tendo o Pau da Bandeira como endereço, partindo do Palácio Rio Branco, então sede de despachos do governador, na Rua Chile, numa íngreme descida que saía na Ladeira da Montanha, onde funcionavam os lupanares mais famosos da Bahia, inclusive o lendário 63.
Corria a segunda metade da década dos anos 1960 e Sandoval, ex crooner da orquestra de Britinho e seus Stucas, que por muitos anos havia trabalhado no Clube Carnavalesco Fantoches da Euterpe, na rua Democrata, próximo à Ladeira do Contorno, montou o movimentado e atrativo bar, com show ao vivo diariamente.
Este bar, sem dúvidas, passou a ser a coqueluche de Salvador, cujo turismo ainda ensaiava os primeiros passos.
Salvador era um canteiro de obras. Em construção, as avenidas de vales, viadutos e o Centro Administrativo da Bahia, naquela que seria futuramente a Av. Luiz Viana Filho, mas que é conhecida por Av. Paralela.
Nesta época, a Rua Chile, Av 7 de Setembro, Rua Carlos Gomes e adjacências, compunham o grande comércio de Salvador, com algumas artérias da cidade baixa, entre o Elevador Lacerda e a Praça Deodoro. A exceção de uma ou outra, todas as agências bancárias ali se localizavam...
O cenário do Varandá era interessante. A entrada pelo Pau da Bandeira e as mesas dispostas frontais à Bahia de Todos os Santos. Uma vista esplendorosa para curtir uma cerveja nos finais de tarde ou aos sábados...
O grande violonista João da Matança era a estrela do bar, mulato, alto e esguio, já com seus 60 anos, contratado para acompanhar ao violão aqueles que quisessem dar uma palhinha no show. Os artistas da Bahia desfilavam ao microfone e as noites eram verdadeiramente inesquecíveis...
Além de proprietário, Sandoval, era um bom cantor, freqüentavam o Varandá artistas famosos e emergentes, a exemplo de Batatinha, Panela, Ederaldo Gentil, Riachão, Edil Pacheco, Jocafi, João Só, Carlos Uzel, Ilma e Jane Gusmão, Vevé Calazans, Carlos Napoli, eu, Antonio Carlos Sena, Luiz Villas Boas, entre outros. Vários deles já se encontram em outro plano, a exemplo de João da Matança, Sandoval, Batatinha, João Só...
O Varandá resistiu até o início dos anos 1970, quando Sandoval fundou uma boate na Pituba e fechou as suas portas...
NOITES no TARRAFA e no ZUCCA
A fase pré turística vivida em Salvador nos deu oportunidade de conviver com grandes artistas baianos e de outros estados que vinham a Salvador realizar shows.
A Zuca Pizzaria ficava na Barra, próximo ao Farol da Barra, enquanto o Tarrafa localizava-se na Av. Joana Angélica, vizinho do Convento da Lapa, onde a sóror Joana Angélica foi morta pelos portugueses, na guerra de independência (1823), hoje funcionando a Faculdade Católica de Salvador.
Rubinho era o proprietário do Tarrafa e do Zuca Pizzaria, nosso amigo e admirador, desde antes, quando teve uma casa de móveis no Relógio de São Pedro, na Av. 7 de Setembro.
No Tarrafa, bar/restaurante intimista, freqüentava a classe média da Bahia. Alguns artistas faziam dali seu ponto de encontro. Entre estes, eu, Carlos Napoli, Carlos Lacerda, Guido Guerra, Antonio Carlos Sena, Edil Pacheco, entre outros. Ali tivemos a oportunidade de conhecer os grandes compositores Luiz Vieira, Sérgio Bittencourt, entre outros.
Nosso amigo e partícipe de longos papos noturnos, Carlos Lacerda era o grande pianista da Bahia, contratado pela TV Itapoan, figura obrigatória nos grandes espetáculos musicais, numa época em que a música acústica reinava. A eletrônica não havia entrado no mercado ainda, apesar de vir ensaiando os primeiros passos...
Lacerda teve uma grande paixão pela artista conquistense Ilma Gusmão, em cuja homenagem compôs A Jiboeira, uma vez que Ilma havia nascido em Vitória da Conquista e sua família é oriunda da Jibóia, na zona rural.
VITÓRIA DA CONQUISTA
Mais a frente tenho boas lembranças de Conquista e dos nossos poetas e músicos que pretendo rememorar ora por diante. Aguardem.

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