quarta-feira, 29 de maio de 2013

"AMORES PARISIENSES" ALAIN RESNAIS


Por André Setaro



Recolhi da antiga revista eletrônica Trópico (creio da UOL), este interessante ensaio de Carlos Adriano sobre Amores parisienses (On Connaît la Chanson), que, década passada, antes de ser lançado comercialmente, passou no Tv Cult com o nome de Aquela velha canção. Abrindo as necessárias aspas:

"Um “novo” filme de Alain Resnais está em cartaz em São Paulo. “Novo”, entre aspas, porque “On Connaît La Chanson” (« Conhecemos a Canção ») é de 1997. Talvez um mistério que só o circuito exibidor pode explicar, assim como só a sanha “tradutor/ traidor” do distribuidor pode explicar o estapafúrdio título em português (“Amores Parisisenses”).


Título que até poderia fazer sentido se deixarmo-nos enganar pela reles sinopse noticiada pelos roteiros culturais -uma “Quadrilha”, como a cantada por Chico Buarque, sobre des/encontros amorosos na cidade-, mas que ignora o potencial poético do título original, adequado à estrutura formal do filme.



Talvez seja sinal dessa época estrepitosa, de escandalosos fenômenos hipermidiáticos, em que não se percebe que este aparentemente modesto filme de Resnais é quase uma pequena revolução para o cinema tanto quanto foi o impacto inaugural de outros filmes do autor no estalar da Nouvelle Vague.



“On Connaît La Chanson” está para “Hiroshima, Meu Amor” (1959) assim como “Smoking/No Smoking” (1993) está para “O Ano Passado em Marienbad” (1961). Se “Marienbad” instaurou a relatividade quântica no cinema, “Hiroshima” inaugurou o tempo dialético.



Em termos joyceanos, “Marienbad” é “Finnegans Wake” e ”Hiroshima” é “Ulysses”. Em termos filosóficos, “Chanson” muda de banda e faz coro com “Marienbad”, em tributo a Wittgenstein e seus jogos lógicos de linguagem, dançando entre exercícios mentais.



Mas toda essa comparação entre filmes antigos e novos é de superfície. Na verdade, por questões de ousadia e estética, “On Connaît La Chanson” é mais radical do que “Smoking” e está mais próximo de “Marienbad” do que o par de filmes permutatórios e as “trocas íntimas” entre suas peças e partes (para citar a série de peças de Alan Ayckbourn que resultaram em “Smoking / No Smoking”).



“Smoking” parece pretender explicar (30 anos depois) o método de “Marienbad”, mas sem a complexa ambiguidade deste (tanto que o diretor dividiu o filme em dois e não fez como “Marienbad”, que acumula vários “filmes” ao mesmo tempo). Em “Marienbad” ocorrem planos simultâneos em que passado, presente e futuro não se distinguem nem fazem questão disso -o primado do que Gilles Deleuze chamou, duas décadas depois em seu livro sobre cinema e tempo, de “indecibilidade” (1) .



Não é necessário decidir, todos planos convivem num mesmo plano; a questão da decisão é irrelevante no jogo estrutural (não é tanto que não se pode decidir, é que não se quer decidir, pois não faz senso). Se “Smoking / No Smoking” parece um diagrama, onde não há surpresa num filme escravo do esquema, “Marienbad” preserva o mistério ambíguo e aleatório, em que se perde pelos jardins de labirintos de um Borges ou um Escher.



Quando a medida de critério é longevidade, elogia-se muito Manoel de Oliveira, por seu vigor criativo em idade provecta, mas o octogenário Resnais merece também elogios por seu engenho inventivo. Em junho próximo, Resnais completa 81 anos. Do grupo do “jovens turcos”, ele é mais moço apenas do que Eric Rohmer (nascido em 1920), ninando os meninos François (Truffaut) e Jean-Luc (Godard). 



Se Oliveira inova com a coragem e humor de seu sotaque português, como Rohmer o faz com seus racontos de provérbios e estações -mas ambos dentro da moldura de uma certa tradição-, Resnais revoluciona o cerne da forma composicional ao pensar em como descobrir outros modos de narrações. Godard, que também revoluciona (mas ao contrário), descobriu o estilo do aforismo e se dedica a decantar melancolia em digressões fragmentárias, erótico-esotéricas.



Oliveira consegue produzir pelo menos um filme por ano; Resnais está há cinco (desde “On Connaît La Chanson”) sem rodar um fotograma. Diretor intransigente, filma pouco e prepara demoradamente seus filmes, que costumam suscitar incompreensão, hostilidade ou perplexidade junto à crítica e ao público. Cada filme de Resnais, um criador de protótipos de linguagem, é uma proposição de cinema.



“Smoking/No Smoking” foi escrito por Resnais e Agnès Jaoui & Jean-Pierre Bacri. Jaoui/Bacri voltam a dar o tom no libreto para a mise-en-scéne de Resnais em “On Connaît La Chanson”. Resnais cercou-se de roteiristas literatos –Marguerite Duras (“Hiroshima, Meu Amor”), Alain Robbe-Grillet (“O Ano Passado em Marienbad”), Jean Cayrol (“Muriel”, 1963), Jorge Semprun (“A Guerra Acabou”, 1966 e “Stavisky”, 1974), Jacques Sternberg (“Je t'aime, Je t'aime, 1968), David Mercer (“Providence”, 1977), Henri Laborit (“Meu Tio da América”, 1980), Jean Gruault (“La Vie Est un Roman”, 1982, e “L'Amour à Mort”, 1984), Henry Bernstein (“Mélo”, 1986) -que forneciam o substrato por meio do qual o cineasta subverteria as convenções da literatura para fazer puro cinema. 



“Smoking/No Smoking” é um filme em dois, par de filmes em si mesmos (quase). A mesma história, o mesmo cenário, os mesmos personagens, os mesmos intérpretes. O desenrolar da trama muda de acordo com a opção do tipo (se fuma ou não), o que desencadeia diferenças narrativas, já predeterminadas. 



Resnais sempre transformou os parâmetros da linguagem em jogo mental, mas aqui ele reviu o plano da pura especulação científica marienbadiana -como em “Providence” e “Meu Tio da América”, ensaios sobre modos de contar histórias- no zênite da arte aleatória,” tour de force” do cinema da permutação (embora não tão aleatório assim) numa época em que banalizavam trips de videogames.



Os filmes de Resnais tratam os parâmetros da linguagem (os códigos e as convenções da gramática narrativa tais como: plano/contra-campo, corte, som off, panorâmica -foi ele quem disse certa vez: “Um travelling é uma questão de moral”) como elementos autônomos, que valem por si mesmos na estrutura do filme e acionam outros sentidos e contextos além do texto propriamente diegético.



“On Connaît La Chanson” delimita sua operação no musical, gênero do cinema em que os problemas da vida são suspensos para se dançar pisando nos astros distraído. Diz Deleuze: “O musical não se contenta em nos fazer entrar na dança, ou, o que dá no mesmo, em fazer-nos sonhar. O ato cinematográfico consiste em que o próprio dançarino entre em dança, como se entra no sonho”. 



Resnais faz o dublante (o equivalente a cantante) entrar em transe, saindo da diegese sonhada por um processo mental induzido. O filósofo francês conclui: “Se o musical nos apresenta explicitamente tantas cenas funcionando como sonhos ou pseudo-sonhos com metamorfoses, é porque ele inteiro é um gigantesco sonho, mas um sonho implicado, e que ele próprio implica a passagem de uma suposta realidade ao sonho”.



Filmes europeus esquadrinharam o musical da “fábrica de sonho” americana com posturas ora homenageantes ora anti-ilusionistas. Se Demy transpôs o gênero para um sotaque francês sem sobressaltos em “Os Guarda-Chuvas do Amor” (1964), outros diretores transplantaram o modelo para um contexto europeu com certos desvios de norma e rota: Ozon recorreu à trama do filme de suspense e mistério em “Oito Mulheres” (2002) e Lars von Trier criou arestas e texturas ásperas para o melodrama naturalista-metafísico em “Dançando no Escuro” (2000).



Outros foram mais longe ainda na anti-alusão: Godard fragmenta a continuidade num musical neo-realista -“Uma Mulher é Uma Mulher” (1961), e Straub-Huillet perpetram um musical marxista e materialista-dialético -“Crônica de Anna Magdalena Bach” (1967). Isso para não falarmos das óperas operárias de Straub-Huillet, como “Othon” (1969), “Moses e Aron” (1974), “A Morte de Empédocles” (1986). O filme de Resnais participa dessa linhagem, ironizando a fluidez ilusionista com doses de estranhamento e incômodo.



O rigor do diretor surge num arcabouço da memória afetiva: “As canções que usamos são aquelas que vieram para nós naturalmente, através de uma associação de idéias”. Resnais equaliza essa espontaneidade: “Queríamos um grande número de hits (em particular, de modo que o público não pensasse que as canções tinham sido escritas para o filme). Podemos sentir um sucesso mesmo se nunca o ouvimos antes. Não conhecia algumas das canções sugeridas por Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri, mas eu senti que elas eram hits quando as ouvi”.



O conhecido amor de Resnais pelos musicais evitou que o diretor se extraviasse pelo terreno da ilusão típico do gênero: “Um musical quase sempre contém dança ou pelo menos movimentos e gestos que evocam o dançar. Uma vez mais, nós buscamos um estilo mais cotidiano e prosaico. Queríamos que as canções entrassem nas cenas sem qualquer aviso ou alarde. Se os espectadores, mesmo se apenas uma vez ou outra, puderem esquecer que estão ouvindo uma canção e pensarem que aquelas palavras são um diálogo, então eu ficarei feliz”.



Essa “naturalidade” (embora forjada de modo artificial) na intervenção das músicas na diegese é um mecanismo de propulsão para a trama em ciranda (ou quadrilha). Odile Lalande (Sabine Azéma, a senhora Resnais vestida por Christian Lacroix) procura um novo e grande apartamento. Sua jovem irmã, Camille (Agnès Jaoui) é guia turístico por sítios históricos de Paris, enquanto prepara tese de doutorado sobre cavaleiros rudes do ano 1000 num remoto lago francês.



Simon (André Dussollier), que escreve peças de rádio-teatro e se sustenta como corretor de imóveis, acalenta uma paixão oculta por Camille, que, por equívoco, apaixona-se por Marc Duveyrier (Lambert Wilson), agente galante e patrão de Simon na imobiliária, que tenta vender a Odile um apartamento grandioso, porém condenado. 



Claude (Pierre Arditi), o “insignificante” marido da irmã de Camille, tacitamente não aprova a compra e forja outras táticas fora do casamento quando reaparece na vida de Odile um velho amigo dela, o desajustado Nicolas (Jean-Pierre Bacri), que está em vias de se separar de Jane (Jane Birkin), não se dá bem com Camille e se torna confidente de Simon. 



Fiel ao ritmo de ciranda e ao jogo de acasos que tanto preza, Resnais cria pequenos quiproquós, “trompe de fait divers”, engendrando engodos, casos e ciladas (no jogo de ciranda). Odile fica penalizada com um velhinho atropelado, mas lamenta mesmo supor que o neto dele era o rapaz que ela dispensara numa entrevista daquela manhã. Camille, no primeiro encontro (casual) com Marc, enquanto ambos esperavam Odile, suspeita (por ouvi-lo ao telefone e lágrimas de gripe) que ele terminava um caso de amor, gerando a afeição entre os dois.



“On Connaît La Chanson” desconstrói a falsa naturalidade do tempo que pára para alguém cantar. Aqui não se dança, os personagens apenas cantam, ou melhor, dublam -e daí um dos desejos declarados de Resnais: de que os trechos de canções no filme fossem ouvidos como diálogos.



Polifonia de vozes, as falas são feitas vozes de canções, que são justapostas à narrativa como paródia, metacrítica ou comentário distante da ação, no compasso de kitsch e chique, no diapasão da ironia e do lírico. A “música original” de Bruno Fontaine quase se perde na vintena de “músicas não originais” que ocupa a trilha sonora.



Uma das originalidades de “On Connaît La Chanson” é que não há identificação de gênero entre quem canta e quem dubla (com duas únicas exceções -significativamente ou não, no par anagramático Jane/Jean, a de Jane Birkin e a de Jean Aquistapace). Todas as cenas musicais são dubladas, ou seja, o ator ou a atriz não canta o que escutamos, ele ou ela “dobra” a voz de alguém, faz o “play back”, como se cantasse de fato, mas é peça de um jogo que dá voltas.



O contraste entre voz feminina dublada por personagem masculino -e vice-versa- incomoda e desloca. A textura da gravação (ruídos e chiados de disco) acusa a distância de época. Outro distanciamento anti-ilusionista é o tempo curto que dura cada canção (o que também trava o mecanismo de identificação do espectador com o que se passa na tela). São recursos que impedem a “suspension of disbelief” (suspensão da descrença) necessária para entrar na dança do musical.



O filme dá as cartas logo de cara e enuncia as regras do jogo. Sobre os letreiros de apresentação, uma voz feminina no vácuo (sem qualquer som de fundo): “Estão todos aqui? Todos me ouvem?”. Alguns planos depois, saberemos que é Camille guiando o grupo de turistas. Tal fala, enunciada em total silêncio, anuncia o espetáculo anti-ilusionista prestes a começar e ecoa a última frase do filme.



Uma luz artificial de teatro se faz, e uma máscara isola a sigma nazista no palco. Por telefone, o general de Hitler recebe ordens expressar de destruir a cidade. Ao mal-estar com a mensagem do mal, o constrangido ogro encara seus asseclas e (como num fervor idolatrado) passa a dublar a delicada Josephine Baker cantando “J'ai Deux Amours” (Vincent Scotto), declarando seu amor pelo país e por Paris.



Ainda no início do filme, as vozes de Dalida e Alain Delon cantando a manjada “Paroles, Paroles” é outra senha pertinente na abertura de uma peça que brinca com palavras dubladas. Ironia, alusão, desconcerto -Resnais é auto-reflexivo, mas atento ao mundo (o contexto histórico da guerra nos lança na época de muitas das canções mas nos induz à solidariedade afetiva com a cidade-palco). 



“Résiste” -o brado de luta de Odile é France Gall interpretando a canção que seu marido Michel Berger fez para ela em 1982, cujo “single” se tornou “un tube” (como dizem os franceses, ou seja, um hit), e que é usada como tônica dominante, quase em caráter manifesto (auto-ajuda auto-derrisória para os dilemas e levante de estima para o des/ânimo dos personagens). A canção (remixada em 1986 como toada funk pelos arranjos de Prince), assim decupada, explicita seu teor desesperado e desumanizado, com o indefectível refrão -“Résiste, prouve que tu existes!”.



A idéia de fratura (as frases musicais quebradas) chama a noção de passagem: numa mesma sequência Odile dubla uma voz feminina e depois a voz masculina (“é desesperador, mas é preciso ser sincero”); num plano Odile liga o rádio do carro e no plano a seguir Marc passa a dublar a canção que começara no outro espaço (”pequenas misérias que vão passar”); num plano Odile dubla para Camille “que não se importa” (com as mágoas do amor) e no plano seguinte ela desliga a canção que toca no rádio à cabeceira da cama de Claude.



O elemento “ruptura” faz dueto com o elemento “passagem” quando Claude decide dizer a Odile que vai romper o casamento, ligar-se a outra mulher e partir. Em solo, ele se prepara para irromper na festa de inauguração do apartamento dublando em pensamento Serge Gainsbourg (“Je suis venu te dire que je m'en vais”).



Após ensaiar o comunicado, ele encontra Odile chorando (não pela separação que ainda desconhece mas pela descoberta da construção em frente à sua janela) e hesita: “je suis venu” (a frase lacônica é dublada em corte abrupto, refletindo a situação), para daí consolar Odile com um trecho maior da canção.



Dubla-se também por humor. O hipocondríaco Nicolas visita três médicos diferentes enumerando uma lista de males somáticos e falências orgânicas de modo tão exasperado como disparatado, dublando Gaston Ouvrard numa cançoneta cuja composição parece receita de Noel Rosa ou de um Augusto dos Anjos aviado por Lamartine Babo (“Je ne suis pas bien portant”, Vincent Scotto).



Louco de amor calado, Simon projeta-se nos cavaleiros da parada que encanta Camille nas ruas de Paris e remete aos cavaleiros no ano 1000, trajado a caráter e dublando “Vertige de l'Amour”, pop-muzak de Alain Bashung.



Na biblioteca, Simon dubla, vazando vidros e silêncios, Gilbert Bécaud e sua “Nathalie”, canção que fala em “minha guia” e cujo nome rima com Camille. Na festa, acuado pelo olhar hostil de Marc (seu patrão e o ladrão de sua amada), Simon defende-se dublando Johnny Hallyday (“Qu'est ce qu'elle est ma gueule”).



Galante e cínico, o yuppie Marc gosta de dublar pelas ruas dos “quartiers” e cantar garotas na festa com as vias e vozes dos sedutores Jacques Dutronc e Gilbert Bécaud (“J'aime les filles”). Enxotado da festa por ter traído a confiança de Odile com a omissão da construção que bloqueará a vista do apartamento, Marc sai com rompantes de Claude François (“Le Mal Aimé”, versão francesa de Terry Dempsey para “Daydreamer”). Na fossa e no balcão do bar, Marc bebe dublando Pierre Papadiamandis (“Le Blues du Blanc”).



Como não poderia deixar de ser num filme de cirandas amorosas e dançando no eixo da tradição romântica francesa da canção francesa, “homme et femme” fazem par e duo. No apartamento do primeiro encontro, Camille e Marc fazem em duo um jogo de sedução e malícia, dublando os versos dúbios de “Et Le Reste”, com Arletty e Jean Aquistapace.



Na torrente de insinuações, Marc interrompe e pergunta o que ela disse. Disfarçando-se de rogada, Camille vira os olhinhos e volta à cançoneta e suas chacotas maliciosas. 



Outro dueto, mas dublado a voz solo, fazem Simon e Nicolas no banheiro de um dos apartamentos vazios que visitam para alugar. Simon já deixou de ser o corretor de imóveis que leva o cliente Simon para comprar seu lugar. Trocam confidências sobre suas vidas afetivas sem rumo e desarrumadas.



Desolados, caem sentados na borda da banheira e dublam Jane Birkin cantando a dilacerada “Quoi”, de Serge Gainsbourg. Em cena posterior, a intérprete original vai dublar a si mesma com a mesma canção na despedida visceral a Simon na estação de trem.



Em três momentos, uma mesma canção é decupada (escandida) por um largo coro de personagens: enquanto se preparam para a festa Simon, Claude, Marc, Odile, Camille e o pai fazem a toilete em frente ao espelho; na festa, Claude puxa uma corrente para animar Camille com a batida tecno de um hard rock do grupo Téléphone (“C’est Toi”); no final, aos pares -Camille e Simon, Odile e Claude- parecem dublar “Ce n'est rien” de Julien Clerc. 



Como contraponto jocoso à torrente de “cantus interruptus”, Resnais faz os personagens dizerem, em algumas cenas, versos de canções como falas (não frases cantadas). Um exemplo: no restaurante, perto da mesa de Odile e Claude, uma figurante confidencia para a amiga em diálogo não cantado “Non, rien de rien, non, je ne regrette rien”, versos de “Je ne regrette rien” (Charles Dumont e Michel Vaucaire), um dos maiores sucessos de Edith Piaf e um dos símbolos da tradicional “chanson française”.



Ainda no campo do contraponto, Resnais usa ruídos como diálogos ou instâncias dialógicas: o som de carros passando pelo horizonte de tráfego rima com a panorâmica vertical que desce pelas pernas dos nazistas; a britadeira de uma construção em obras próxima ao consultório intromete-se na conversa entre Nicolas e a médica severa.



Nesse filme em que a fala (mesmo que como canto falado) apresenta-se como protagonista, é interessante notar o modo não verbal com que Resnais arma uma cena crucial do clímax dramático (quando Odile ouve a notícia de que a vista do apartamento que acabara de comprar está condenada).



Após vermos e ouvirmos Simon contar a Nicolas, vemos apenas (sem descrição verbal, só ruídos e música) vários planos que mostram o fato consumado e a reação de Odile (imagens do prédio sendo erguido por uma panorâmica vertical que sobe pela fachada, da vista da janela sendo tapada em corte seco, do susto de Odile em flagrante close-up).



Os créditos iniciais, sugerindo um desenho animado em clima de fotonovela (as figuras recortadas e coladas têm corpo desenhado e rosto fotografado), abrem com uma dedicatória a Dennis Potter. Resnais foi um dos primeiros cineastas do chamado “filme de arte” a reconhecer o universo dos “mass media” e das histórias em quadrinhos (é célebre o plano de seu curta “Toda Memória do Mundo” que em travelling pelos corredores da Biblioteca Nacional de Paris detém-se na prateleira com HQs). O Potter (que não é Harry) de Resnais é o verdadeiro mago de “Chanson”, sua chave de segredo.



Potter (1935-1994), um inglês filho de mineiros, estudou em Oxford e editou uma revista subversiva. Foi jornalista, crítico de televisão e político fracassado (do Partido Trabalhista). Vítima de artrite “psoriasis”, escreveu para o teatro antes de se voltar para a televisão.



Num átimo, seu estilo singular se impõe: “mise en dérision” que encena com humor cáustico e imaginação lírica a sociedade britânica. Ligado à BBC e ao Channel Four, Potter roteirizou mais de 30 séries de TV e telefilmes, tendo dirigido apenas duas vezes (os críticos não deixaram jamais de creditar os outros como sendo de sua cepa).



Entre os produtos mais famosos estão “Pennies from Heaven” (1978), “The Singing Detective” (1986) e “Lipstick on your Collar” (1993). Nestas três séries de seis episódios, encontramos o motivo da dedicatória de Resnais: Potter sistematiza um método -personagens realistas entoam canções de época dublando em “play-back” o que gira na “pick up”- de admirável sucesso de crítica e público. Culminando o jogo anti/ilusionismo com um cruel toque de vida, o misantropo Potter aceitou falar televisão sobre o câncer em estado terminal; recebeu a estima de inúmeros admiradores anônimos.



Então onde estaria a novidade de Resnais? Fazendo seus personagens falarem por meio de canções dubladas que expressavam suas vidas interiores e de acordo com a época em que viviam, Potter devassou o delírio irracional das emoções de um modo que filmes convencionais poucas vezes fizeram. Resnais fratura o discurso, nega o tempo da ação, fura o tímpano da verossimilhança, sonega a transparência do espetáculo.



Não apenas o fato de usar canções francesas faz a diferença em “On Connaît La Chanson”. O contraste reiterado entre voz de homem dublada por mulher e voz de mulher dublada por homem, a conjunção abolida entre época da história e gênero musical (mixando registros rachados de music-hall e batida pesada do pop contemporâneo) e o sincronismo entre elementos afastados e defasados são recursos que desafinam o tom corrente.



O arranjo de vozes como num cantochão de polifonia medieval ou melodia de timbres do canto-falado atonal e as frases (musicais) bastante curtas, cortadas abruptamente, antes de consumar-se a expectativa apriorística do espectador-ouvinte (num estranhamento de ritmo que lembra o início de “Muriel” com sua avalanche de tempos de um retorno, curtos planos em aceleração introdutória) são outros arranjos que fazem do estranhamento também divertimento.



Enfim, o uso absolutamente não-naturalista da dublagem musical, que mais perturba do que ilustra, chega ao trítono da insolência com a naturalidade com que todos aqueles recursos e arranjos são dispostos na pauta cotidiana. Se não é um quase-musical, “On Connaît La Chanson” poderia ser uma anti-ópera atonal fraturada em ditos minimalistas.



O próprio Resnais colocou a questão, esclarecendo um original diferencial: “O desafio era como não copiar Potter, dada minha paixão por sua obra. Decidimos usar canções francesas enraizadas num clima cotidiano, excluindo qualquer noção de fantasia. As canções, com duas ou três exceções, não descrevem o mundo imaginário dos personagens. Frequentemente notei que as canções populares acompanham os atos de nossas vidas cotidianas. Se nós nos comportássemos naturalmente, afinal, nós usaríamos letras de canções em nossas conversas”. 



“On Connaît La Chanson” chama a atenção para o que significa a música de fundo em nossa vida. Nesses tempos modernos de últimos românticos, qualquer situação parece pedir uma trilha musical, indicando a identificação afetiva de um momento específico com uma determinada música e sugerindo o modo como sentimentos imediatos podem corresponder a velhas canções arquivadas na memória e sempre prestes a terem seu sulco riscado pela agulha da paixão. 



Mas também nos desperta para a necessidade do silêncio. “Trop de musique, trop de musique” (muita música, muita música), reclamava Webern em 1903. Há um excesso de música em todo canto, um mundo com muita música, demasiados ruídos. As frases musicais sincopadas do filme parecem diagnosticar, antes que o mal-estar, o mal-ouvir de hoje. O cinema insolente do “filósofo da percepção” Alain Resnais pede uma pausa no mundo contemporâneo, tão convulsivo, mas com tão pouca beleza.



Por sua singeleza, propriedade e desconserto, a cena final do filme é de um contido arrebatamento -e não fica nada a dever aos grandes momentos do cinema auto-reflexivo. O último plano do filme encerra a regra do jogo com incerto mistério e certa “nonchalance”.



Um “fade-out” na imagem das roupas dos convivas indica que a festa acabou. Sobram apenas despojos e desejos de algo que se soubesse de fato não seria motivo de comemoração. Inaugura-se um aposento gorado, mas se inauguram novas fases na vida dos personagens, aflorando outros caminhos -eis os jardins dos outros caminhos que se bifurcam aleatórios.



Andando em meio da bagunça habitual dessas ocasiões (a xepa fútil das vaidades), o pai de Odille -em magnífica interpretação de Jean-Paul Roussillon- senta-se no sofá, pega um CD largado ali na mesa, e diz, desapontado: ”Isso me lembra de alguma coisa...”, antes de olhar para a câmera e perguntar para o suposto espectador: “Há alguém aí que conhece esta canção?”.



A indagação, evidentemente apropriada à proposta do filme, remete aos créditos de apresentação (“Estão todos aqui? Todos me ouvem?”) e comenta o verso de uma canção dublada por Simon aos gritos inverossímeis na biblioteca (“Essa canção já ouvi”). Evocando “Marienbad” e a cadeia de citações (internas e externas) que retroagem, os letreiros finais passam horizontalmente pela tela, vindos da direita para a esquerda.



Se a revolução levada a cabo por Resnais no início dos anos 60 fez mais barulho do que sua empreitada 40 anos depois, isso não significa esmorecimento de empenho (falta de fôlego) numa tradição fundada no rigor por ele trilhada, mas que os novos século e milênio ainda não despertaram para as sutilezas perturbadoras de um Resnais “fin-de-siècle”.



No calor da hora de “Marienbad”, o crítico brasileiro José Lino Grünewald (1931-2000) anteviu, sob os dados de Mallarmé, a ”inauguração de uma linguagem” que formulou “a experiência inicial -a técnica do conhecimento”.



Entender o fato novo (seja informação de primeiro grau ou obra de criação) requer tempo e paciência, ensinam a teoria da comunicação e a história da arte. Como diz Nicolas para Camille (e seus intérpretes são justamente os roteiristas de “On Connaît La Chanson”, como também a dizer aos que se interrogam na tela do cinema): “É preciso ser indulgente com os imbecis" (2) . "










Carlos AdrianoÉ mestre em cinema pela USP e realizador dos filmes “A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha” (placa de ouro de melhor documentário no Festival de Chicago) e “Remanescências” (aquisição/coleção The New York Public Library), entre outros.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Audiência Pública TV por assinatura no Brasil - 25/02/13 - (9/14)

CINEMA BAIANO HISTÓRIA E PACHORRA

Por André Setaro

Tudo começa com Redenção. Iniciado em 1956, o filme, que vem a ser o primeiro longa baiano, leva três anos para ser concluído e exibido em noite de gala no cinema Guarany, em abril de 1959. (como mostra um trecho do documentário de Petrus Pires e Paulo Hermida, com todos os presentes em traje a rigor, como era costume na época). Roberto Pires já tinha feito algumas experimentações amadorísticas em curtas como O calcanhar de Aquiles e Sonho. Seu pai tem uma ótica, a Mozart, e, nela, Roberto, fascinado com o cinemascope de O manto sagrado (The robe), que vê no mesmo Guarany no qual seria apresentado o seu primeiro longa, resolve investigar, na ótica do pai, para fazer uma lente anamórfica igual à lente do cinemascope. Desde já, além de um pioneiro, um inventor.
Mas Roberto Pires trabalha com alguns amigos (Oscar Santana, entre eles), mas não está vinculado às pessoas que discutem cinema no clube de Walter da Silveira, como Glauber Rocha, Luis Paulino dos Santos (autor de Um dia na rampa), entre outros. É somente a partir da estréia de Redenção que as pessoas começam a se aproximar dele. Porque ficam impressionadas com a concretização de um sonho: a realidade de um filme baiano de longa metragem projetado na tela de um cinema de escol como o Guarany.
Há, nesta época, pessoas que se interessam pelo cinema. Rex Schindler é um deles e se encontra, numa tarde, no escritório de Leão Rosemberg, com Glauber Rocha, então crítico de cinema do Jornal da Bahia, mas que não o conhecia pessoalmente. Este encontro ocasional entre Rex Schindler e Glauber Rocha dá início ao que mais tarde seria chamado deCiclo Baiano de Cinema. Glauber, que já tem prontos dois curtas, O pátio e Cruz na Praça (desaparecido), não tem experiência prática e chama Roberto Pires para fazer parte do grupo. Schindler e Rocha, a ver o exemplo de Redenção, sonham na viabilidade e exequibilidade de se implantar, na Bahia, uma infra-estrutura cinematográfica. E surge a Escola Bahiana de Cinema, que se estabelece com propostas e um cronograma mais ou menos definitivo. Schindler, associado a outros produtores, produz Barravento, que, incialmente é dirigido por Luis Paulino dos Santos e depois, por força de um golpe (segundo se propaga), a direção é dada a Glauber e o roteiro completamente reescrito em parceira com o esquecido José Telles de Magalhães. Segundo Schindler, Paulino quer uma mudança mística enquanto a idéia de Glauber é no sentido de, como diz o próprio título, uma mudança social.
O fato é queBarravento demora quase três anos para ser lançado, o que ocorre em 1962, depois do lançamento de A grande feira. Glauber leva ao Rio o copião debaixo do braço para ver se Nelson Pereira dos Santos consegue montá-lo.
Estabelecidos os postulados da Escola Bahiana de Cinema, entre os quais a procura de um cinema com raízes na cultura local sem a perda, contudo, do caráter universalista, o projeto se centraliza na criação de uma infra-estrutura capaz de que fossem realizados filmes de forma continuada e sistemática. O lucro de um seria investido no seguinte, e assim por diante. Num esquema de rodízio entre os diretores. Glauber Rocha assume Barravento e, assim, a seguir o cronograma, A grande feira, com argumento de Rex Schindler, é roteirizado e dirigido por Roberto Pires. O próximo, Tocaia no asfalto, tem programado Glauber Rocha na direção, mas este vai ao Rio montar Barravento e já cogita, no sul do país, a produção de Deus e o diabo na terra do sol, que seria realizado em 1963, com recursos oriundos da produtora de Jarbas Barbosa, a Copacabana Filmes. Além do mais, Glauber lança, por esta época, o manifesto do Cinema Novo no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil editado por Reynaldo Jardim.
A Bahia se torna uma Meca do Cinema, como diz o historiador renomado Georges Sadoul no jornal Les Lettres Françaises. E se torna um pólo aglutinador para cineastas do sul que aqui aportam na esperança de explorar o seu décor deslumbrante. Um dos pioneiros nesse sentido é Trigueirinho Neto, que faz Bahia de Todos os Santos, mas com intenções sérias, de análise dos conflitos sociais de uma sociedade. Não pretende Trigueirinho a exploração do décor, mas, ao contrário, a sua desmistificação. Outros, porém, gananciosos, possuem outros propósitos como a busca do exotismo tropical como faz o francês Robert Mazoyer que, baseado num argumento de Jacques Viot, realiza aqui O santo módico, sobre um jovem pescador desiludido que, apaixonado por uma bela mulher, é abandonado por esta que o troca por outro. Em torno da população, uma imagem sacra que parece solucionar problemas de toda ordem. Viot pretende focalizar a superstição de um povo subdesenvolvido que é manejado por forças ocultas. No elenco, atores baianos entre outros estrangeiros e brasileiros: Irene Boriski, Edgard Carvalho, Heitor Dias, Jorge dos Santos, Gessy Gesse, Zezé Macedo, Leny Eversong, Maria Lígia, Oscar Santana, Léa Garcia, Breno Mello, Jurema Penna, José Telles de Magalhães, Lídio Silva, etc. Ruy Guerra funciona como assistente de direção e a iluminação está a cargo de dois profissionais de alta competência: Roger Blanché e Andréas Winding. Com assistência de Hélio Silva. O filme, porém, está desaparecido.
Assim, Glauber não tem condições geográficas de dirigir no asfalto, como está planejado, que é entregue a Roberto Pires em 1961, ano do lançamento de A grande feira em Salvador, a alcançar uma bilheteria sem precedentes, superando, inclusive, o grande êxito do cinema mundial: Ben Hur, de William Wyler, com Charlton Heston. Os baianos vão em massa ver A grande feira, lançado, com festa, em duas salas: uma de primeira linha, o Capri, e outra mais popular, o Jandaia.
Por que Rex Schindler não produz Deus e o diabo na terra do sol, a precisar Glauber ir ao Rio buscar recursos? Segundo se conta, porque Schindler, ao invés de patrocinar a obra glauberiana, prefere investir numa co-produção de Portugal e Brasil: A montanha dos sete ecos, todo filmado em Cachoeira, cidade histórica, importante na consolidação do 2 de Julho de 1823, quando se dá, realmente, a completa independência brasileira iniciada em 7 de setembro de 1822 (independência, vírgula, bem entendido, pois apenas a dívida portuguesa com a Inglaterra, a dona do mundo naquele momento, passou para o Brasil). A montanha dos sete ecos, de um tal de Armando de Miranda, chega a ser exibido em algumas capitais. Um filme de aventuras com atores baianos como João Di Sordi, Roberto Ferreira (o Zé Coió, o Zazá de A grande feira), João Gama, Milton Gaúcho, Jota Luna, José Telles de Magalhães (que funciona também como diretor de produção). O principal não é da Bahia: Milton Morais.
A Escola Bahiana de Cinema, que tem Schindler como principal produtor, ao lado de David Singer e Braga Neto, tem, a rigor, os seguintes filmes: Barravento, A grande feira, e Tocaia no asfalto. Outros filmes considerados genuinamente baianos, no entanto, aqui são feitos, como O caipora (1963), de Oscar Santana, produzido por Winston Carvalho, sobre um azarento (Carlos Petrovich), um caipora (como se denomina no interior), que se apaixona pela filha do coronel local (Milton Gaúcho), mas sofre o preconceito e a discriminação da população local. Ainda no elenco, Maria Adélia (em impressionante caracterização), Iva Di Carla, João Di Sordi, Garibaldo Matos (que depois se tornaria juiz de futebol), Leonel Nunes, Jurema Penna, Conceição Senna, Lídio Silva (o beato Sebastião do filme de Glauber), José Telles de Magalhães (este está em todas). A fotografia (em excelente preto e branco) é de Giorgio Attili, montagem de Roberto Pires (amigo de Oscar desde os primórdios) e como diretor de produção um futuro cineasta: Agnaldo Siri Azevedo.
Outro filme genuinamente baiano é Sol sobre a lama (1964), uma produção de João Palma Neto, que, antigo feirante e sindicalista, considera que A grande feira trata superficialmente a questão do drama da feira de Água de Meninos. Decide, então, com dinheiro do próprio bolso, dar uma espécie de resposta a A grande feira. O filme tem roteiro escrito por Miguel Torres (que falece em acidente logo depois), e, para dirigi-lo, Palma chama Alex Viany. O resultado final não agrada ao produtor e a questão acaba na justiça. Há, desse filme, uma versão de Viany, a que passa no lançamento no Guarany, e uma versão de Palma Neto. Sol sobre a lama, na versão do crítico carioca Viany, é muito influenciado pelo cinema japonês pelo qual o cineasta está apaixonado e contraria o sentido de timing querido pelo produtor. Mas se constitui um sucesso, uma produção mais ambiciosa. A fotografia (em deslumbrante colorido) é do consagrado Ruy Santos. Vinicius de Morais coloca a letra noLamento de Pixinguinha especialmente para este filme, que tem no elenco Othon Bastos, Geraldo D'El Rey, Jurema Penna, Dilma Cunha, Roberto Ferreira, Milton Gaúch, Gessy Gesse (que se tornaria a sexta ou sétima mulher do poetinha), Maria Lígia, Garibaldo Matos, Glauce Rocha, Lídio Silva, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Doris Monteiro…
Em Feira de Santana, Olney São Paulo deseja filmar a novela Caatinga, do fazendeiro Cyro de Carvalho Leite, e encontra neste o apoio para realizarO grito da terra (1964), canto de cisne do Ciclo Baiano de Cinema. Filme sobre o drama de homens e mulheres que vivem a violência e a fome do sertão agreste, O grito da terra tem, no seu cast, Helena Ignês, João Di Sordi, Eládio de Freitas, Augusta São Paulo, Lídio Silva, Orlando Senna, entre outros. Fotografia de Leonardo Bartucci. E partitura musical do maestro Remo Usai, que faz também a música de A grande feira e Tocaia no asfalto. Aluno de Miklos Rosza, Usai é um partiturista de alto nível que vem a valorizar muito os filmes baianos.
Anselmo Duarte filma O pagador de promessas nas escadarias da Igreja do Paço, Nelson Pereira dos Santos, que faz Mandacaru vermelho, porque, indo realizar Vidas secas nas Alagoas, acontece chover torrencialmente, impossibilitando o projeto, e, para não perder a viagem, vem a Bahia e realiza este nordestern meio improvisado que o tem como mocinho.
Interessante observar que embora alguns filmes baianos atuais tenham recebido prêmios em festivais, a exemplo de Eu me lembro, de Edgard Navarro, Samba Riachão, de Jorge Alfredo, estes filmes são vistos por uma elite e não alcançam o grande público, apesar de estreados em salas dos complexos. A explicação é simples e repetida: atualmente, o povo não vai mais ao cinema como nos idos dos anos 60.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

O CINEMA DE HOJE


Espaço de Cinema Tempo Glauber ( Rio de Janeiro)

Era uma vez um público variado, que lotava salas de cinema para ver de tudo, desde dramas e suspenses intrincados até o desenho animado mais bobo, ou aquele filme catástrofe que seria esquecido momentos depois da projeção. De uns 30 anos para cá esse público vem desaparecendo, sendo substituído ao poucos pelo público de um gênero só, ou quase.
Os relatórios de bilheterias anuais demonstram bem a migração do grande público para filmes de apreensão rápida, com muitos efeitos especiais e, principalmente, uma falta de criatividade sem precedentes. Estimulados pelo fenômeno, os produtores seguem abrindo seus cofres para levar mais super-heróis e continuações de sucesso para as telonas, ganhar mais dinheiro e produzir mais desse cinema fast food. Um ciclo sem fim.
Acontece que ninguém aguenta comer lanche com gosto de isopor a vida inteira e acaba preferindo fazer outra coisa longe do cinema, liberando as salas para uma faixa etária específica, a mesma que no futuro vai sair de fininho. Essa migração, somada às facilidades de acesso aos filmes, via tv, internet e outras mídias, já começa a ser sentida nos Estados Unidos, o país que mais produz e ganha dinheiro com cinema até hoje. A diminuição progressiva do público pagante, de dois anos para cá, tem preocupado os produtores que, sem perceber o que realmente está acontecendo, saem em busca de novos quadrinhos adaptáveis e franquias que permitam sequências infinitas.
O que pensar, por exemplo, quando analisamos a lista dos maiores blockbusters de todos os tempos e constatamos que entre os vinte primeiros filmes que mais arrecadaram no mundo somente dois, até o momento, não são parte de nenhuma franquia: Titanic, que, dada a quantidade versões extendidas e 3D que vão e voltam dos cinemas, só não tem sequências por que é historicamente impossível, e Alice no País das Maravilhas, que é a adaptação de uma história já levada ao cinema várias vezes? E não pára por aí. Desses mesmos vinte, somenteAvatar, líder absoluto de público com uma arrecadação de mais de dois bilhões de dólares, é baseado em um roteiro original, ainda que seja uma versão interplanetária de Pocahontas.
Além de comprovar a capacidade de seu diretor, James Cameron, em fazer rios de dinheiro,Avatar também faz parte de outra classificação dessa mesma lista: é o primeiro de uma série, já com duas continuações previstas. As adaptações de livros Harry Potter e a Pedra Filosofal eJurassic Park – O Parque dos Dinossauros estão juntos com ele, com a décima primeira e a décima oitava maiores bilheterias de todos os tempos, respectivamente.
Nada contra esses filmes, que, a seu modo, têm sua qualidade artística e indubitavelmente inovaram a técnica cinematográfica, mas fica difícil não formar coro com André Barcinski quando, em sua coluna do dia 28 de fevereiro, pergunta o que aconteceu com o público que lotava as salas para ver filmes como Perdidos na Noite.
Ah, George, você aqui de novo?
Se os rios de dinheiro gerados por Tubarão, de Steven Spielberg, são apontados como o começo da derrocada, eu faço questão de apontar o meu dedo para um outro senhor: George Lucas. Amigo íntimo daquele outro mas menos qualificado artisticamente, o homem que repudiava alterações nos filmes mas não se cansa de ganhar dinheiro com as que faz em uma mesma história, foi quem provou ao mundo que séries de filmes podem ser muito rentáveis.
O primeiro ano do resto de nossas vidas foi 1980. A sequência de Guerra nas EstrelasO Império Contra Ataca, estreava em mais de mil salas e teve um rendimento duas vezes maior do que o segundo colocado naquele ano, a comédia Como Eliminar seu Chefe. Neste ano: completando os dez filmes de maior bilheteria nos EUA, estavam as comédias Loucos de Dar Nó e Recruta Benjamin; o drama O Destino Mudou sua Vida; duas sequências: Desta Vez Te Agarro e Punhos de Aço – Lutador de Rua, e três títulos piloto (que tiveram sequência): Apertem os Cintos o Piloto SumiuOs Irmãos Cara-de-Pau e Lagoa Azul. Isso tudo na frente de filmes como Gente como a GenteO IluminadoO Homem Elefante e Vestida para Matar que também tiveram bilheterias significativas.
Os títulos mais assistidos do resto da década comprovam o começo da supremacia das trilogias e afins: somente três filmes, E.T. – O ExtraterrestreTop Gun e Rain Man não eram parte de uma série de filmes. Mas nem tudo estava perdido, filmes como Num Lago DouradoTootsie,Laços de Ternura e Atração Fatal ainda conseguiam emplacar o segundo lugar em seus anos de lançamento.
Uma mina de ouro chamada Pixar
Os primeiros anos dos anos 90 pareciam estar fadados a percorrer o mesmo caminho, comEsqueceram de Mim e Exterminador do Futuro 2 encabeçando as listas de bilheteria de 1990 e 1991, respectivamente. E teria mesmo sido assim nos primeiros anos da década se a Disney não resolvesse retomar sua produção de filmes em 2D e se a Pixar não tivesse aparecido.
Ainda que com o cinema mais voltado para o público infanto-juvenil, que é o principal pagante de hoje em dia, as duas produtoras – que vêm trabalhando juntas desde então – eram uma alternativa eficaz aos filmes sequênciais. Assim, em 1992 o desenho animado Aladdinconseguiu bater Esqueceram de Mim 2: Perdido em Nova York e Batman – O Retorno em público pagante. Em 1994 foi a vez da Pixar, com seu Toy Story ficar em primeiro lugar, na frente deBatman Eternamente. Neste mesmo ano, Pocahontas, o quarto filme mais visto, também superouAce Ventura – Um Maluco na África. O terceiro lugar do ano ficou com Apollo 13.
Marcando presença entre as maiores bilheterias da década, a dupla parece ter causado algo mais na configuração do público que, por algum motivo, voltou a olhar para filmes mais adultos e preferiu assistir a Forrest Gump e aos catastróficos Independence DayTwister (primeira e segunda bilheteria de 1996), e Titanic, mas sem ignorar o desenho O Rei Leão e os primeiros episódios Homens de Preto e Missão: Impossível, que mantiveram bons lugares na lista de rendimentos.
Um homem de carisma
Protagonista de Forrest Gump, Tom Hanks também esteve em Apollo 13, foi o responsável pela voz do cowboy Woody em Toy Story e talvez tenha sido o ator mais carismático da década, até ser substituído por Will Smith. Filmes com o ele sempre têm um retorno bom, como fica bem explícito na década de 90. Além dos títulos já citados, ele também esteve presente em Sintonia de Amor e Filadélfia, quinto e décimo segundo filmes mais vistos de 1993.
O segundo filme do ator a desbancar continuações e desenhos foi O Resgate do Soldado Ryan, lançado em 1998. Este ano, especificamente, foi diferente em todos os sentidos dos que vieram até então. Numa década em que títulos passageiros e facilmente assimiláveis deixaram para trás pérolas como Melhor É Impossível e Um Sonho de Liberdade, ter um ano com apenas dois filmes em série (Doutor Doolittle e Rush Hour) e um desenho animado (Vida de Inseto) entre os mais vistos, chama a atenção. Mesmo que junto com eles venham outro monte de filmes-catástrofe e comédias bobas.
Mas tudo não passou de um desvio no caminho da vaca rumo ao brejo e uma preparação para o retorno do pai de todos, nosso velho conhecido, o Sr. George Lucas. O responsável pela maior bilheteria de 1999, com a sequência, que na verdade não era sua sequência e sim uma prequência, daquela mesma história que ele gosta de contar: Star Wars – Episódio I: A Ameaça Fantasma. O filme superou de longe o público de O Sexto SentidoToy Story 2 e o primeiro Austin Powers e Matrix.
Depois de mais uma passagem de Lucas pelas estatísticas, o ano de 2000 foi quase um resumo do que aconteceu e uma prévia do que estava por vir. Teve de tudo um pouco nas dez maiores bilheterias. Filme infantil: O Grinch; Tom Hanks: O Náufrago; sequência: Missão Impossível 2; biografia: Gladiador; comédia romântica: Do Que as Mulheres Gostam; catástrofe:Mar em Fúria; comédia de costume: Entrando Numa Fria; super-heróis: X-Men, paródia besteirol:Todo Mundo em Pânico e terror: Revelação. Claro que alguns deles tiveram não só uma, mas várias continuações.
Histórias sem fim
Reparem que com a chegada dos anos 2000, mais um paradigma pôde ser quebrado. Com a revisita a Guerra nas Estrelas, Lucas mostrou ao mundo que pensar em trilogias era muito pouco, já que uma história pode sempre ser aproveitada até a última gota. Se fossem baseadas em grandes séries de livros, melhor ainda.
Em 2001, entre as dez maiores bilheterias, só Pearl Harbor não é parte de uma franquia e não foi feito para o público infantil. Entre os lançamentos do ano estavam os primeiros episódios de séries de filmes que durariam mais de dez anos no cinema ou que, fiéis à origem, não se preocupavam muito com a estrutura de início, meio e fim, já que o filme seguinte sanearia os problemas. Claro que estou falando de Harry Potter e a Pedra Filosofal e O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, primeira e segunda maior arrecadação, respectivamente.
Daí pra frente nada mais segurou a vontade de ganhar dinheiro fácil dos produtores e os números após o nome só foram aumentando. Histórias que facilitavam continuações e séries de livros e gibis começaram a ser procuradas avidamente para garantir bilheteria, fazendo o caminho inverso até mesmo ao preconizado pelo guru Lucas. A lógica deixou de ser “uma boa história tem que ser esgotada até o final” e deu lugar à filosofia “ache alguma fonte que nunca seque”.
Dos filmes mais vistos nos últimos anos, só mesmo Avatar é baseado em um roteiro original e nem ele escapou da maldição das franquias. Seguindo a lista, filmes com super-heróis como Homem-Aranha, que liderou a bilheteria em 2002 e 2007, e Batman, em 2008, com O Cavaleiro das Trevas; o encerramento da saga O Senhor dos Anéis, em 2003, com O Retorno do Rei; as animações e continuações Shrek 2, em 2004, e Toy Story 3, em 2010; o encerramento da segunda trilogia Star Wars, com A Vingança dos Sith, em 2005; o terceiro, mas não último Piratas do Caribe, com O Baú da Morte, em 2006; e, para encerrar, em 2011, a segunda parte do último capítulo do bruxinho Harry Potter, As Relíquias da Morte.
Isso olhando por cima, porque qualquer olhada mais demorada detecta que o problema está cada vez mais grave. Como explicar, por exemplo que de todos os filmes que estiveram entre os dez mais vistos de 2001 até hoje, com exceção das animações, só sete não sejam refilmagem, versão ou parte de alguma franquia? Dá até para começar o entender o sucesso que alguns filmes bem fracos como Um Sonho Possível conseguem fazer, ou mesmo a popularidade dos desenhos animados.
O lado positivo
Obviamente que o cinema, como arte, perde muito com a crise que assola a produção americana, mas muita coisa antes ignorada começa a ser descoberta pelo público. A falta de uma diversão mais séria abre espaço para produções independentes e acaba forçando visitas a gêneros menos populares, como o documentário. Além de permitir que títulos estrangeiros sejam conhecidos, já que produções não-americanas não têm mais que competir de igual para igual com o que vem de lá.
No Brasil, diferente dos EUA, o público só vem aumentando de 2008 até os dias de hoje, mesmo que o preço do ingresso seja salgado. Os grandes blockbusters, essas versões todas e títulos infanto-juvenis citados anteriormente, ainda são os que atraem a maior parte do público por aqui também, mas é interessante notar o espaço que os documentários vêm ganhando nas salas de todo o país. Não é raro ver filmes do gênero nos grandes complexos de cinema e o público saindo da sala satisfeito com o que acabara de ver.
Mas não foi só o mercado de documentários aqui que mudou. O público de cinema nacional, de maneira geral, também cresceu significativamente. Se em 2001 as produções nacionais levaram 6,9 milhões de espectadores às salas, em 2011 o número foi de 17,8 milhões de pagantes. Isso sem considerar o ano de 2010, quando o lançamento de Tropa de Elite 2, maior sucesso de bilheteria no Brasil, levou mais de onze milhões de pessoas ao cinema e fez o balanço final do ano fechar em 25,6 milhões. Mas, reparem, era uma sequência.

Fontes: IMDb, Mojo e Filme B