Por André Setaro
A linguagem cinematográfica nos filmes de Gláuber Rocha não é uniforme, sofrendo variações estilísticas bem acentuadas, principalmente em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), sem falar no puzzle que é o seu canto de cisne, A idade da terra (1980). Se, antes de Gláuber, o cinema brasileiro segue os cânones da narrativa griffithiana (de David Wark Griffith, cineasta americano que faz O Nascimento de uma Nação, em 1914, e Intolerância, em 1916, e é considerado o pai da narrativa cinematográfica), a registrar na sua história poucas ousadias formais – exceção se faça a Limite, 1930, de Mário Peixoto, é a partir dele que são introduzidos conceitos de Sergei Eisenstein no corpus do filme. Em Barravento (1959/1962), ainda que timidamente, a presença do soviético se faz sentir, assim como uma procura de distanciamento dos moldes praticados por Griffith – a narrativa de progressão dramática in crescendo, com a apresentação do conflito, desenvolvimento deste, clímax e desenlace.
Mas é somente a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra que efetua um corte longitudinal na história do cinema brasileiro, que Glauber Rocha instaura um certo paradoxo estético num filme que conjuga várias influências, desde a tragédia grega (o cego Júlio como fio condutor), passando pelowestern, na exploração dos grandes espaços, e Buñuel, na seqüência do assassinato do Beato Sebastião por Rosa, até chegar a Eisenstein, na matança dos beatos em Monte Santo (influenciada pela escadaria de Odessa de O Encouraçado Potemkin, 1925) e a Kurosawa, com os rodopios dissonantes de Corisco, entre outros.
O ritmo em Deus e o Diabo na Terra do Sol não segue um mesmo diapasão. Ora vem com cortes rápidos (quando Manuel esfaqueia o fazendeiro ou com os cavalos correndo na invasão da casa do vaqueiro que acaba por matar a sua mãe) num espírito quase fordiano, ora vem com tomadas longas (a segunda parte no encontro de Manuel com Corisco). Gláuber Rocha, neste filme extraordinário, por mostrar uma enxurrada de influências, revela que sabe reprocessá-las, dando a elas um estilo, o estilo glauberiano, que seria copiado ad infinitum pelas gerações posteriores sem, contudo, nunca igualá-lo.
Este ritmo paradoxal de Deus e o Diabo na Terra do Sol não seria repetido em Terra em Transe, que possui uma estrutura narrativa de cortes ligeiros, montagem sincopada, e tomadas rápidas. O cineasta opta por este ritmo para adequá-lo melhor à sua temática. Um poeta que agoniza enquanto relembra fatos pretéritos. O filme se passa todo neste instante de agonia e as imagens surgem, portanto, dispersas, não enfeixadas dentro de uma narrativa corrente. Neste caso, é o pensamento tumultuado do personagem interpretado por Jardel Filho que se situa como o próprio móvel do filme. A Biografia de um Aventureiro, onde apresenta a trajetória do político vivido por Paulo Autran, é extremamente wellesiana até mesmo por seu tom radiofônico. O processo do pensamento agônico pode lembrar Alain Resnais.
As variações estilísticas encontradas na filmografia glauberiana significariam uma dispersão autoral? A resposta é negativa no sentido de que o estilo de Glauber Rocha, particularíssimo, admite a confluência de ritmos dessemelhantes na composição de sua mise-en-scène. Ora o corte rápido, como em Terra em Transe, ora a ausência deste como em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Neste caso, não se estaria diante de duas mises-en-scènes? Sim, mas duas que se revelam variações sobre um mesmo diapasão autoral, ainda que com timings diversos.
Glauber Rocha não é nem um estilista nem um artesão, mas um autor de filmes, com universo ficcional próprio e estilo particular. O cineasta estilista não tem uma visão de mundo, embora possua um estilo característico que o faz reconhecível de filme para filme, enquanto o artesão não tem nem uma coisa nem outra, mas sabe articular uma narrativa, tem carpintaria, artesania. Glauber é bastante pessoal na sua visão que dá do mundo através das imagens em movimento. Em O Dragão da Maldade Contra oSanto Guerreiro procura uma transfer do ritmo da literatura de cordel para imprimi-la no cinema. A sensação que se tem, vendo este filme, é a sensação de quem lê uma história cordelista, com a diferença de que a transferência de uma linguagem a outra se processa com extrema felicidade. Da palavra escrita, da sintaxe verbal, passa-se à sintaxe cinematográfica que busca aquela.
O cinema glauberiano é um cinema de ritmo, portanto. Barroco, tem o sentido da linguagem, a compreensão de estar criando por meio de uma sintaxe própria, a unir esta à morfologia característica do específico cinematográfico. Um plano é morfológico, mas, quando este plano entra em contato com outro, deixa de sê-lo para dar lugar à sintaxe cinematográfica. Glauber, nesse sentido, é um cineasta que louva o verbo cinematográfico. Poucos os autores no cinema nacional, compreendendo-os como tais, como dizia François Truffaut, que possuem uma visão do mundo e um estilo de fazer cinema. Glauber Rocha encaixa-se perfeitamente na definição do severo crítico do Cahiers du Cinema.