quarta-feira, 19 de junho de 2013

"O Bandido da Luz Vermelha",de Rogério Sganzerla

Rogério Sganzerla e sua amada Helena Ignez nos tempos de O Bandido da Luz Vermelha

por André Setaro

No dia do Cinema Brasileiro, hoje, 19 de junho, minha homenagem a uma obra-prima de nossa cinematografia: O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla.
Já? Quase meio século. E pareci que vi ontem O bandido da luz vermelha, obra-prima não somente de Rogério Sganzerla mas do cinema brasileiro. O filme é um assombro, atestado de vida inteligente atrás das câmeras, talento demais.
A segunda metade da efervescente década de 60 é convulsiva, turbulenta, criativa, bastando ver Maio de 1968, quando a imaginação quer tomar o poder. Neste ano emblemático, que, segundo se diz, nunca termina, a cinematografia nacional encontra o Cinema Novo sufocado pela repetição, e vê surgir, sob a influência dos novos cinemas que pipocam pelo mundo, o que vem a ser chamado de Cinema Marginal ou Underground ou, ainda, para se ajustar ao modo tupiniquim, Udigrudi.
Ozualdo Candeias, de maneira isolada, dá sinais de uma posição a latere no mesmismo discursivo cinemanovista com seu belíssimo A margem (1967), que muitos críticos apontam como o ponto de partida do Cinema Marginal. Candeias, no entanto, parece um caso singular, não atrelado, propriamente, a uma torrente, mas um artista ímpar e, como o título de seu filme, à margem.
O carro-chefe do Underground, ainda que o rótulo sempre tenha sido recusado pelo seu autor, é, sem dúvida, O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, uma explosão de talento, uma obra de inusitada importância e surpreendente em sua "anatomia" discursiva que, se bebe nas águas de Orson Welles e Jean-Luc Godard, tem, entretanto, vôo próprio, estilo particular. O advento deste filme, tal a influência que exerce, faz aparecer um "filão", que se denomina de marginal, a se refletir, inclusive, no cinema baiano, como atestam Caveira my friend (1969), de Álvaro Guimarães (que falece, aos 65 anos, no último 15 de outubro, em Porto Seguro) e, do mesmo ano, Meteorango Kid, o herói intergalático, de André Luiz Oliveira.
Plena de invenção - e aqui se pode falar claramente num "cinema de invenção", a estrutura narrativa de O bandido da luz vermelha mostra as peripécias de um perigoso ladrão e assassino que tem sua trajetória narrada por dois locutores de rádio (um homem e uma mulher) de programa classe "z" típico da época.
Jorge (Paulo Villaça num papel que Sganzerla queria para Lima Duarte), marginal paulista que coloca em polvorosa a população de São Paulo, desafiando a polícia ao cometer os crimes mais requintados, torna-se famoso pela invulgar técnica que aplica em seus golpes. A opinião pública e a imprensa destacam a sua coragem, celebrizando-o como O Bandido da Luz Vermelha - Sganzerla se inspira num criminoso que realmente existe e, quando finaliza o filme, leva um projetor 16mm para projetar, na cadeira, para ele, o seu filme.
De nada valem os esforços do delegado de polícia (Luiz Linhares em excelente interpretação - sua saída do carro lembra a do Inspetor Quinlain de Orson Welles em A marca da maldade/Touch of evil). Numa de suas idas a Santos, Jorge conhece a provocante Janete Jane (a baiana Helena Ignez que faria logo a seguir outro personagem sganzerliano em A mulher de todos), famosa em toda a Boca do Lixo, zona de crime e prostituição (e também um lugar cultuado pelo cinema paulistano dos anos 60 e 70).
É Janete, que Jorge começa a amar, que acaba delatando o Bandido da Luz Vermelha, provocando o seu suicídio. A delação de Janete lembra a delação de Patricia (Jean Seberg) em Acossado (À bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, e o suicídio de Jorge, o final de O demônio das onze horas (Pierrot, le fou, 1965), também de Godard.
Godard e Welles (que mais tarde seria uma idéia fixa para Sganzerla a ponto de lhe dedicar dois longas sobre a sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1942) são influências decisivas para o jovem cineasta, que desponta, logo neste primeiro longa, com uma obra-prima. Se os filmes iniciais do Cinema Novo procuram o modelo no neo-realismo italiano, com incursões na Nouvelle Vague (Os cafajestes, de Ruy Guerra), o Cinema dito Marginal tem como fontes inspiradores a estética godardiana, os filmes subterrâneos novaiorquinos (John Cassavetes, Jonas Mekas, Shirley Clarke...) e, no caso do autor de O bandido da luz vermelha, Orson Welles e Godard.
Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, filme que traumatiza, em 1964, o cinema brasileiro, tem uma colcha de influências (John Ford, na exploração dos grandes espaços, Akira Kurosawa, na gestualística de Corisco, Serguei Eisenstein, na matança dos beatos, a tragédia grega, na configuração do cego Júlio como fio condutor, etc, etc). O Cinema Marginal vem para dar uma resposta ao discurso já saturado (e impedido pela ditadura) dos cinemanovistas. É verdade que Terra em transe, de Glauber Rocha, já apresenta uma estrutura narrativa com acentos fortes de Orson Welles.
Sganzerla assume a boçalidade, o cafajestismo, e seu filme é brega nos pontos certos (a refletir uma brasilidade inconteste, além do uso da metalinguagem, com a narração em off das duas vozes plena de um humor escrachado - "Jovem se atira do alto de um edifício. Ex-vestibulanda de Direito", mais ou menos assim).
O grande crítico Paulo Perdigão, quando do lançamento de O bandido da luz vermelha, escreveu que este
"É um filme deliberadamente cafajeste, mistura de dramalhão mexicano mais musical argentino, mais chanchada brasileira, mais tropicalismo latino. O bandido da luz vermelha é o que se pode definir como uma obra pejorativa por autocrítica e por excelência. Ao realizar o seu primeiro longa metragem, o diretor paulista de 22 anos, Rogério Sganzerla, decidiu reunir dentro dele todas as críticas mais impiedosas que o seu bandido poderia sofrer. O mau-gosto que um dia Oswald de Andrade converteu em estética e a pilantragem que está na música popular passam ao cinema com uma nonchalance que, há poucos anos, qualquer pessoa de bom senso consideraria deprimente. Mas, hoje, o bom senso é ter, exatamente, um espírito malandro para saborear as delícias desse universo extravagante onde se somam os filmes popularescos dos anos 40-50, o tango, a crônica policial amarela, o bolero, o jeito boçal dos heróis folclóricos, o romantismo cretino das paixões de novelas e, sobretudo, essa figura inefável que é o bandido de cabelos gomalinados, paletó de ombreiras e sapatos de verniz dos carnavalescos da Atlântida (...) Para definir com clareza a legenda pífia do bandido, a trilha sonora se esmera em narrações radiofônicas (uma espécie de reportagem volante retocada pela verve da PRK-30) e intervalos musicais à base de Molambo, Sabor a Mi, Uno e Castigo (canta: Roberto Luna)."
Quando se revê, hoje, O bandido da luz vermelha, é que se percebe o quanto o cinema brasileiro está medíocre em sua produção atual. Se o cinema de invenção acabou, também o delírio está afastado da cinematografia nacional.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Literatura e cinema: O Pacto dos Estados Unidos da América com o diabo

Texto do Professor Jorge Moreira (Especial para o Setaro's Blog)

O pacto com o diabo (Lúcifer, Mefistófeles, Mefisto) tem uma longa história na cultura ocidental, estando relacionado originalmente com a história bíblica da tentação de Jesus Cristo no deserto. Conforme o “Evangelho segundo São Mateus” (1), um dos mais confiáveis, as principais tentações tomam a forma de três incitações diabólicas que são: a incitação para transformar pedras em pão; a incitação para saltar do templo e a incitação para reinar sobre o mundo. Biblicamente, Jesus resiste às tentações, negando-se a fazer o pacto com o diabo. Das três tentações, a terceira é a que parece ter tido mais influência na história da literatura e do cinema ocidental.

Nas obras literárias, por exemplo, o tema da tentação e do pacto com o diabo, têm sido representadas através da elaboração da lenda (que circulava na Idade Média) sobre a relação de troca entre Fausto e Lúcifer. E a lenda se transformou numa das formas predominantes (uma espécie de padrão artístico), para a produção artística subsequente. Na literatura, o diabo oferece ao herói pactário algo que ele deseja desesperadamente - riqueza, poder ou conhecimento -, exigindo em troca a possessão da alma do herói depois da sua morte.

Uma das primeiras manifestações deste padrão artístico (teatral ou narrativo) foi apresentada na peça de teatro A Trágica História do Doutor Fausto escrita por Christopher Marlowe (2) no século XVI. Outra das célebres representações da temática do pacto com o diabo se encontra em Faust, o poema trágico (na forma de peça de teatro com diálogos rimados) escrito por Johann Wolfgang von Goethe no século XIX (3). Já no século XX, o escritor alemão, Thomas Mann (filho da brasileira Julia da Silva Bruhns), prêmio Nobel de literatura, realizou uma extraordinária variação do tema (o pacto com o demônio) na sua obra Doktor Faustus  (Dr. Fausto) de 1947 (4).  No Brasil, o escritor João Guimarães Rosa também realizou uma brilhante variação (as veredas) da lenda de Fausto, na versão do “suposto” pacto do Riobaldo Tatarana com o diabo, no seu consagrado  romance Grande Sertão: veredas (5). A historia do pacto é contada pelo próprio Riobaldo que,  alem de protagonista, é o narrador do romance.
Como sabemos, estes reconhecidos textos literários sobre o pacto diabólico  (incluindo a obra teatral de Christopher Marlowe) foram adaptados para o cinema por escritores e diretores de fama internacional e do Brasil.

No Brasil, existem duas adaptações visuais de destaque do romance de Guimarães Rosa: Grande Sertão, o filme de 1965, dirigido pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, com Maurício do Valle como Riobaldo Tatarana; e Grande Sertão: Veredas (uma minissérie) da Rede Globo, escrita e dirigida por Walter Avancini contando com Tony Ramos no papel de Riobaldo.

Na historia do cinema, o filme Faust, dirigido por F. W. Murnau, é uma das primeiras adaptações cinematográficas (1926) bem sucedidas da lenda de Doctor Faustus para sétima arte. Em língua inglesa, existe uma adaptação cinematográfica  de 1967 que teve grande circulação na época devido às atuações de  Richard Burton e a mulher Elizabeth Taylor, dois ídolos do cinema mundial. O filme, intitulado Faust, foi dirigido por Burton que também acumulava o papel protagonista.

Por seu lado, o romance de Thomas Mann ganhou uma excelente versão cinematográfica intitulada Doktor Faustus que foi realizada em 1982 pelo diretor alemão Franz Seitz (6). Um ano antes, o romance Mephisto de Klaus Mann, escritor e filho alemão de Thomas Mann, ganhou uma magistral versão cinematográfica com o mesmo título, que foi dirigida pelo húngaro István Szabó em 1981 (7 )

A mais recente e destacada realização cinematográfica que conheço sobre o pacto demônico foi realizado em 2011 pelo diretor russo  Alexander Sokurov (8) . Seu filme Faust está baseado numa livre interpretação da lenda de Fausto e de sua adaptação literária por Goethe e por Thomas Mann.

Modernamente, tanto no romance Doktor Faustus de Thomas Mann quanto no romance Mephisto do filho Klaus Mann, o mito do pacto do diabo, foi reinterpretado para funcionar como una metáfora do pacto de Alemanha com Adolf Hitler.

Atualmente, tem sido um recurso frequente identificar situações reais (ou da realidade) com as situações imaginárias (metafóricas ou alegóricas) como se elas fossem situações iguais, semelhantes, e/ou equivalentes. Em geral, a identificação é realizada através do lema: “a arte imita a vida” ou vice versa “a vida imita a arte”.

Mas a relação entre a situação real e a imaginária é de diferença e não de identidade. Apesar de compartilharem algumas características comuns, elas não conformam uma relação entre iguais. No entanto, isso não significa que a realidade imaginária ou simbólica da arte não possa se refletir, imitar, ter correspondência ou projetar-se no processo da realidade histórica em que vivemos dado que as situações políticas, sociais, econômicas e culturais mostram correspondências e paralelismos entre o pacto demoníaco do texto artístico e o pacto demoníaco dos indivíduos e grupos com o poder político, econômico e militar real das classes dominantes da nossa sociedade capitalista.

Nos Estados Unidos, este paralelismo entre a realidade e o imaginário pacto com o diabo crescem em ritmo acelerado e pode ser também interpretado como metáfora ou alegoria do pacto dos EUA com o nazifascismo e suas políticas etnocidas, genocidas e imperialistas.

As invasões e ocupação de países como Iraque e Afeganistão e a invasão e ocupação dos territórios palestinos; a permanência dos campos de concentração e dos centros de torturas como Guantánamo; as sistemáticas acusações e perseguições efetuadas pelos funcionários do governo dos Estados Unidos aos “whisleblowers”, seres humanos como Daniel Elsberg, Julian Assange, Bradley Manning e Edward Snowden, são indicações de que a corrupção, a mentira, a desonestidade, a hipocrisia, a ilegalidade e o crime são as moedas correntes (o pão de cada dia) dentro das principais instituições políticas, militares, econômicas e judiciárias do capitalismo norteamericano. 

Dentro deste contexto, as revelações dos “segredos” políticos e militares dos EUA, por Daniel Elsberg, Julian Assange, Bradley Manning e Edward Snowden, poderiam ser caracterizadas simbolicamente como atos heróicos que tratam de romper ou destruir o pacto dos EUA com o diabo.

Num país verdadeiramente democrático, a sociedade civil e a administração governamental deveriam estar celebrando a dignidade ética e politica de indivíduos valentes e íntegros como Daniel Elsberg, Julian Assange, Bradley Manning e Edward Snowden; a sociedade deveriam estar orgulhosos desses raros indivíduos que, como eles, sacrificam a vida pessoal e profissional para revelar documentos secretos das operações clandestinas e criminais de um governo que aparenta ser democrático, elevando o nível de consciência do público estadunidense (e mundial) sobre o estado de degeneração moral, social e humana a que estamos submetidos sob o capitalismo.

Depois das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, das guerras dos Estados Unidos da América contra o povo do Vietnã, da Coréia do Norte, do Iraque, do Afeganistão, do Paquistão e da Palestina, ficou quase impossível esconder as características nazifascistas do estado autoritário e ditatorial sob o qual estamos sobrevivendo nos EUA.

Em poucas palavras, as revelações de Edward Snowden e o último escândalo em torno da invasão da privacidade de milhões de norteamericanos através dos grampos nos telefones realizados pelas NSA e CIA em alianças com ATT, Verizon, Google, Facebook  e outras  parecem demonstrar que estamos sendo aprisionados por um dos mais hediondos pactos demoníacos já realizados entre autoridades políticas, militares,  judiciais  dos EUA e ideologia e a práticas hitleristas do império do mal.

É quase inacreditável que os desejos e ambições de poder (e riqueza) dos funcionários públicos dos estados capitalistas a serviço da classe dominante estejam agigantando o já escandaloso grau de corrupção individual e social que contribuem para destruir todos os resquícios de dignidade humana que ainda restavam nos Estados Unidos e no mundo ocidental.

E no entanto sabemos (e ficou ainda mais evidente durante esta crise estrutural do sistema capitalista) que não existe superação política, econômica, social, cultural, artística ou cinematográfica possível para este estado de degeneração ética, moral e legal (para este quase interminável pacto demoníaco atual) da nossa sociedade, se não formos capazes de produzir a desejada mudança estrutural deste sistema capitalista imperialista e não formos capazes de criar um novo modo de produção de sociedade humana em que se possa viver sem torturas e crimes de guerra.

NOTAS

1) A história do encontro de Jesus com o diabo no deserto foi adaptada por Pier Paolo Pasolini para o seu belíssimo e revolucionário filme Il vangelo secondo Matteo" (O Evangelho Segundo São Mateus) que dirigiu em 1964 para homenagear o papa João XXIII, o criador do Conselho Vaticano II, um dos elementos  nas origens da Teologia da Libertação. O filme recebeu vários prêmios importantes, dentre os quais o Prêmio Leão de Prata - Grande Prêmio do Jurado- do Festival Internacional de Veneza em 1964.

2) Christopher Marlowe foi um dramaturgo, poeta e tradutor inglês que viveu no denominado “Período Elizabetano”. É considerado um dos maiores renovadores da forma do teatro do período com a introdução dos versos brancos estrutura que seria empregada por William Shakespeare.

3) O filósofo espanhol Manuel Sacristán tradutor do poema trágico Faustus (a obra prima  de Goethe) oferece uma leitura (uma interpretação) brilhante e convincente do poema no seu  ensaio intitulado “La veracidad de Goethe”. Veja no livro Panfletos y materiales, IV: Lecturas. Icaria, Barcelona, 1985.

4) O professor Manuel Sacristán oferece, desde a perspectiva da “filosofia da ciência”, uma leitura  (uma interpretação) sumamente interessante do romance Doktor Faustus de Thomas Mann no seu importante ensaio intitulado “Tres grandes libros en la estacada”.  Veja também no livro Panfletos y materiales, IV: Lecturas. Icaria, Barcelona, 1985.

5) Para uma análise ampliada dos elementos formais da narrativa Roseana, veja o ensaio “O regionalismo de Guimarães Rosa” de Jorge Vital de Brito Moreira (o autor deste texto) na revista Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994, 92-100.

6) O filme Doktor Faustus de Franz Seitz, conquistou o Prêmio de Prata (Silver Prize) do XIII Festival Internacional de cinema de Moscou em 1983.

7) O filme Mesphisto de István Szabó conquistou o Oscar dos EUA de melhor filme estrangeiro (Hungria) em 1982.

8) O filme Faust de Alexander Sokurov,  conquistou o Prêmio Leão de Ouro do 68.ª Festival de Veneza em 2011.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O CINEMA BAIANO EM XEQUE

Por Davi Caires

O que seria esse Cinema Baiano que por muitas vezes é tão aclamado em coros por essas bandas de cá? Faço-me essa pergunta diariamente. E quanto mais eu reflito sobre a questão (e permaneço às margens da cena ), mais convicto fico em querer continuar afastado dessa taxionomia equivocada  e de todas as ilusões e inconveniências que ela traz em si. Daí, seguem-se algumas outras questões posteriores à primeira. Por exemplo: Cinema Baiano é um gênero cinematográfico ou uma título oportunista para se fazer frente aos sulistas em discussões setoriais sobre a partilha de verbas do audiovisual, provenientes do Governo Federal? A primeira questão creio que seja simples: Cinema Baiano não é um gênero. Não pode ser. Onde já se viu o nome de um Estado  -— o território definido de uma Federação qualquer — servir para qualificar e representar as qualidades estéticas e intelectuais de um gênero cinematográfico? Será que há algo como: Cinema Texaniano, ou Xangaiano, ou Cinema do Principado de Kiev? Creio que não. Na música, aqui, o caso se repete. Música baiana não é um gênero. O Axé, sim. Este é um gênero que compreende um tipo específico de bandas, as quais executam arranjos particulares, entoam melodias equivalentes, pregam uma visão de mundo mais ou menos igual e geralmente tocam em carnavais, micaretas ou em grandes shows. Assim como o Axé, também são gêneros musicais: o Arrocha, o Pagode, o Pagodão (há uma infinita distinção entre esses dois últimos), o Forro, o Pé de Serra, o Bloco Afro, o Samba-de-Roda, a World Music, entre outros.  Ou seja, a constatação dessa afirmação de que somos carentes de um autêntico gênero cinematográfico me leva a crer que o “Cinema Baiano” é um termo usado estritamente para fins políticos e que não traz em sua essência nenhuma preocupação com a forma, conteúdo e muito menos com o discurso da linguagem. E essa é a grande armadilha semântica dessa história toda. Alguém dirá: “Cinema Baiano são todas as obras realizadas no estado, cuja maioria da equipe técnica é baiana e as produtoras responsáveis pelos filmes são sediadas na Bahia, portanto somos um só e vamos lutar pela classe, independente se há ou não um gênero específico”. Bom, isso me soa como pensamento de torcida de time de futebol. Cada vez que algum “cineasta baiano” ganha qualquer prêmio em qualquer festival fora do Estado, logo brotam à luz os chefes das torcidas: “Viva O Cinema Baiano! Longa vida ao Cinema Baiano! Nosso cinema vai de vento em popa!” E isso não é um fato. Com essas políticas de fomento a filmes via leis de incentivos e editais públicos criou-se, infelizmente, uma classe de cineastas parasitas, lobistas e políticos. (O termo “político” ao qual me refiro aqui corresponde ao seu significado mais rasante: o político de gabinete; ou aqueles que dão tapinhas nas costas de diretores de emissoras públicas; ou os que se aliam às figuras do alto clero para lhes sugarem um trocado ou pedir-lhes qualquer sorte de benefícios.) Como me recuso em ser esse personagem oportunista então sinto-me confortável em dar continuidade à prosa.

Sendo assim, não está havendo espaços, nem iniciativas, nem reflexões interessantes para se pensar o cinema além do Minc, ou da Secretária de Cultura, ou dos próximos editais. Mais uma vez, alguém daí falará com o peito inflado e o indicador em riste: “Porém, o que hoje conseguimos é um heróico avanço. Passamos décadas vivendo sob as trevas e que ACM foi o culpado por dizimar a cultura do estado e então veio Wagner, e veio Gil e alavancaram uma revolução na cultura, através das políticas publicas...”. Esse discurso é furado. Um: A presença de um tirano ou de um governo autoritário não é a razão maior para justificar o grande período de seca da cultura do estado. Basta lembrar-se de que uma das épocas mais férteis da cultura brasileira deu-se durante o regime militar. Dois: se pensarmos mais cinicamente (e é essa dose de sarcasmo que sinto falta nas discussões por aqui) os editais exercem a mesma função da “bolsa família”, em sua versão, “bolsa cineasta”: o governo dá o dinheiro, contudo não oferece instruções em como os realizadores possam seguir o caminho com as próprias pernas. Não seria bacana se metade das verbas destinadas à produções de filmes fosse encaminhada para cursos de capacitação técnica? Que legal seria se tivéssemos durante todo o ano oficinas, cursos, workshops gratuitos com renomeados roteiristas, brilhantes fotógrafos, exímios maquinistas, competentes produtores... Não. Isso não acontece por aqui. Insistentemente, haverá os ufanistas que dirão que sim; mas não lhes levem a sério; vá por mim. Quem realmente está exercendo o cinema constantemente nessa cidade? (os que fazem apenas publicidade e propaganda política estão fora desse questão, afinal esses não fazem cinema, mas sim, dinheiro) Quase ninguém. De caju em caju alguém ganha uma verba aqui e faz um curta acolá; às vezes, muito raramente, alguém faz uma assistência em um longa; de vez em quando, junta uma turminha e faz um filme na brodagem, no esquema coletivo, e só. Se for inevitável aliar-se ao governo para estimular a sobrevivência da prática então que se comesse a pensar em forma reversa. Dentro dessa idéia em dividir a grana dos incentivos, que hoje praticamente é destinada exclusivamente à produção de filmes, bem que se poderia investir em um grande estúdio público, com diversos galpões, para que os realizadores possam de fato exercitar o cinema. Qualquer cineasta ou produtor cadastrado poderia usar as instalações desses estúdios para realizarem suas obras e até mesmo para estudarem e exercerem as técnicas do cinema. Em troca os realizadores prestariam serviços ao governo; voltaríamos às épocas dos escambos: um diretor de fotografia que usasse os estúdios durante oito horas teria que prestar três horas de trabalho para alguma peça do governo ou alguma cobertura de evento, por exemplo. Isso faria com que se intensificasse a prática do audiovisual em um grau muito mais elevado do que acontece hoje. Precisamos urgente sim ir aos estúdios. É um momento de total controle sobre os objetos, e a atenção se concentra sobretudo nas resoluções práticas e dramáticas das cenas. Sem essa experiência de estúdio, seremos eternos filmadores de externas — dependentes da luz natural, reféns do barulho alheio e perseguidores de um tempo que anda cada dia mais escasso.

Sem essa experiência transformadora dos estudos, e com o governo ditando as regras, e com a  inexistência de um movimento estético e intelectual da pesada,  está se fazendo obras fracas que não estão a atrair nem mesmo os conterrâneos. O mesmo cidadão chato do dedo em riste exclamaria novamente: “O problema são os enlatados americano que ocupam todas as salas de cinema e as pessoas hoje não querem mais ver um cinema pensante! ”  Mais uma reflexão obsoleta. Não é esse o néctar da discórdia. Depois desse lamento, a prosa sente a necessidade em retornar ao modo cínico para tentar enxergar outras variações sobre esse mesmo tema. Ora! Tanto na maioria dos longas e nos curtas que são realizados no estado, os atores e personagens são mal construídos e dirigidos (em decorrência dessa falta de prática a qual comentei ou será mesmo a falta de um talento?) — parecem que vivem em outra estratosfera e, sobretudo, não sabem contracenar: um ator fala, o outro espera e depois fala o seu texto; marcado ao extremo. Aonde é que diálogos assim são proferidos? Como esses personagens conseguirão convencer o público de que são reais e merecedores de atenção? Aqui, há uma tendência estilística em amplificar as interpretações dos atores e criar personagens míticos, oníricos e catastróficos. Por que será que “O som ao redor” está circulando pelos cinco continentes? Por que os personagens são críveis. E essa é uma das virtudes do cineasta em questão — retratar a classe média, dentro da qual ele tem total domínio sobre a forma; e mostrar situações dramáticas que são comuns em todo o planeta.  Aqui, parece que: ou não se sabe ou tem-se medo ou vergonha em retratar esse universo dentro dos filmes. Talvez os cineastas locais se ponham em um degrau tão elevado que não lhes permite aceitar a condição de serem classe-média. Não que todos os filmes têm de representar personagem da nossa vida cotidiana, todavia, mesmo quando não o representam, eles têm a obrigação em ganhar a confiança do público no quesito verossimilhança. E isso não está acontecendo. Sempre é aquela coisa trabalhada nos clichês da interpretação teatral, no aprisionamento do ator ao texto e nas impostações absurdas de vozes. Por outro lado, os cineastas persistem na escolha de temas que estão em voga em editais e na construção de roteiros soníferos, prolixos e tecnicamente defeituosos. O resultado final são filmes mal feitos. A equação é simples: se queremos mais espectadores nos nossos filmes então que se façam obras que dialoguem com eles; e isso não significa fazer filmes simplórios ou caricatos, ou para a cultura de massa. Basta apenas contar uma boa história com personagens interessantes. Sem esses índices de pagantes em salas de cinema, jamais teremos a chance de deixarmos de ser dependentes do governo e de tentar na praça barganhar outros modelos de investimentos. Sem adquirir a confiança desses outros possíveis fomentadores, volta-se ao impasse de apenas continuar sendo o governo a única fonte de liberação de recursos. Por que, afinal, para ele tanto faz se os filmes dêem ou não público, ou sejam bem feitos ou artesanalmente mal elaborados. O governo exige apenas que seu carimbo esteja estampado nas peças de propagandas e que as prestações de contas sejam coerentes e não contenha, por exemplo, na rubrica de “transporte” uma nota fiscal de duas garrafas de Red Label. A necessidade em se fazer bons roteiros e o refinamento na direção de atores são imprescindíveis para se começar a imaginar um sistema de financiamento e produção que se distinga daquele que impera hoje no  Cinema Baiano — o assistencialismo estatal.

Compete aos cineastas daqui romperem com esse padrão, buscarem a ampliação das suas referências e deixarem de acreditar que a revolução virá dos seus “subversivos” filmes,  ou de uma reunião com o Governador, ou das mesas de bares do Rio Vermelho ou das telas luminosas dos seus smartphones. É preciso se distanciar da boçalidade e do cinema “em primeira pessoa”, perseguir outros colóquios que não se refiram apenas aos conhecidos vocábulos e começar a pensar em cinema em seus contornos mais elementares.

Ano que vem chega uma safra de novos filmes nossos no mercado. Torço a favor de todos, como sempre o fiz  — torcer contra é burrice e é um sintoma indelicado de um povo provinciano com síndromes da inveja. No entanto, mesmo a tentar acreditar no que verei, costumo entrar na sala de cinema com o coração aberto mas, invariavelmente saio com ele partido e cada vez mais desacreditado na capacidade artística das pessoas; e crente de que está tudo ao avesso nesse paradigma da cena do Cinema na Bahia. Espero que essa sensação mude com as obras que virão. Se não será tarde demais. E a única saída para essa disfunção sistemática será mesmo rumar ao aeroporto da cidade: está bem díficil competir com as rêmoras; elas estão cada dia mais famintas...

E são por algumas dessas razões citadas nessa texto que não acredito no otimismo, nem nos ideais práticos (e políticos) desse movimento corporativista proclamado de “Cinema Baiano”.

Me desculpem, mas a impressão que tenho é de que muita gente nessa cidade está iludida, procurando soluções inadequadas em equações inexistentes.

Davi Caires é natural de Salvador, Bahia. Formou-se em música erudita; porém, em 2006, a partir de um evento ocorrido no Aeroporto Internacional de Madrid, em que ficou confinado no alojamento da imigração por três dias, descobriu que o cinema é a sua verdadeira expressão artística. Atualmente, está em fase de captação de recursos para produzir "Perversa", seu primeiro longametragem.

Blog de Davi Caires: http://emboscadafilmes.wix.com/davicaires
Fotos de autoria de Natália Reis (Octopus Estúdio)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

"AMORES PARISIENSES" ALAIN RESNAIS


Por André Setaro



Recolhi da antiga revista eletrônica Trópico (creio da UOL), este interessante ensaio de Carlos Adriano sobre Amores parisienses (On Connaît la Chanson), que, década passada, antes de ser lançado comercialmente, passou no Tv Cult com o nome de Aquela velha canção. Abrindo as necessárias aspas:

"Um “novo” filme de Alain Resnais está em cartaz em São Paulo. “Novo”, entre aspas, porque “On Connaît La Chanson” (« Conhecemos a Canção ») é de 1997. Talvez um mistério que só o circuito exibidor pode explicar, assim como só a sanha “tradutor/ traidor” do distribuidor pode explicar o estapafúrdio título em português (“Amores Parisisenses”).


Título que até poderia fazer sentido se deixarmo-nos enganar pela reles sinopse noticiada pelos roteiros culturais -uma “Quadrilha”, como a cantada por Chico Buarque, sobre des/encontros amorosos na cidade-, mas que ignora o potencial poético do título original, adequado à estrutura formal do filme.



Talvez seja sinal dessa época estrepitosa, de escandalosos fenômenos hipermidiáticos, em que não se percebe que este aparentemente modesto filme de Resnais é quase uma pequena revolução para o cinema tanto quanto foi o impacto inaugural de outros filmes do autor no estalar da Nouvelle Vague.



“On Connaît La Chanson” está para “Hiroshima, Meu Amor” (1959) assim como “Smoking/No Smoking” (1993) está para “O Ano Passado em Marienbad” (1961). Se “Marienbad” instaurou a relatividade quântica no cinema, “Hiroshima” inaugurou o tempo dialético.



Em termos joyceanos, “Marienbad” é “Finnegans Wake” e ”Hiroshima” é “Ulysses”. Em termos filosóficos, “Chanson” muda de banda e faz coro com “Marienbad”, em tributo a Wittgenstein e seus jogos lógicos de linguagem, dançando entre exercícios mentais.



Mas toda essa comparação entre filmes antigos e novos é de superfície. Na verdade, por questões de ousadia e estética, “On Connaît La Chanson” é mais radical do que “Smoking” e está mais próximo de “Marienbad” do que o par de filmes permutatórios e as “trocas íntimas” entre suas peças e partes (para citar a série de peças de Alan Ayckbourn que resultaram em “Smoking / No Smoking”).



“Smoking” parece pretender explicar (30 anos depois) o método de “Marienbad”, mas sem a complexa ambiguidade deste (tanto que o diretor dividiu o filme em dois e não fez como “Marienbad”, que acumula vários “filmes” ao mesmo tempo). Em “Marienbad” ocorrem planos simultâneos em que passado, presente e futuro não se distinguem nem fazem questão disso -o primado do que Gilles Deleuze chamou, duas décadas depois em seu livro sobre cinema e tempo, de “indecibilidade” (1) .



Não é necessário decidir, todos planos convivem num mesmo plano; a questão da decisão é irrelevante no jogo estrutural (não é tanto que não se pode decidir, é que não se quer decidir, pois não faz senso). Se “Smoking / No Smoking” parece um diagrama, onde não há surpresa num filme escravo do esquema, “Marienbad” preserva o mistério ambíguo e aleatório, em que se perde pelos jardins de labirintos de um Borges ou um Escher.



Quando a medida de critério é longevidade, elogia-se muito Manoel de Oliveira, por seu vigor criativo em idade provecta, mas o octogenário Resnais merece também elogios por seu engenho inventivo. Em junho próximo, Resnais completa 81 anos. Do grupo do “jovens turcos”, ele é mais moço apenas do que Eric Rohmer (nascido em 1920), ninando os meninos François (Truffaut) e Jean-Luc (Godard). 



Se Oliveira inova com a coragem e humor de seu sotaque português, como Rohmer o faz com seus racontos de provérbios e estações -mas ambos dentro da moldura de uma certa tradição-, Resnais revoluciona o cerne da forma composicional ao pensar em como descobrir outros modos de narrações. Godard, que também revoluciona (mas ao contrário), descobriu o estilo do aforismo e se dedica a decantar melancolia em digressões fragmentárias, erótico-esotéricas.



Oliveira consegue produzir pelo menos um filme por ano; Resnais está há cinco (desde “On Connaît La Chanson”) sem rodar um fotograma. Diretor intransigente, filma pouco e prepara demoradamente seus filmes, que costumam suscitar incompreensão, hostilidade ou perplexidade junto à crítica e ao público. Cada filme de Resnais, um criador de protótipos de linguagem, é uma proposição de cinema.



“Smoking/No Smoking” foi escrito por Resnais e Agnès Jaoui & Jean-Pierre Bacri. Jaoui/Bacri voltam a dar o tom no libreto para a mise-en-scéne de Resnais em “On Connaît La Chanson”. Resnais cercou-se de roteiristas literatos –Marguerite Duras (“Hiroshima, Meu Amor”), Alain Robbe-Grillet (“O Ano Passado em Marienbad”), Jean Cayrol (“Muriel”, 1963), Jorge Semprun (“A Guerra Acabou”, 1966 e “Stavisky”, 1974), Jacques Sternberg (“Je t'aime, Je t'aime, 1968), David Mercer (“Providence”, 1977), Henri Laborit (“Meu Tio da América”, 1980), Jean Gruault (“La Vie Est un Roman”, 1982, e “L'Amour à Mort”, 1984), Henry Bernstein (“Mélo”, 1986) -que forneciam o substrato por meio do qual o cineasta subverteria as convenções da literatura para fazer puro cinema. 



“Smoking/No Smoking” é um filme em dois, par de filmes em si mesmos (quase). A mesma história, o mesmo cenário, os mesmos personagens, os mesmos intérpretes. O desenrolar da trama muda de acordo com a opção do tipo (se fuma ou não), o que desencadeia diferenças narrativas, já predeterminadas. 



Resnais sempre transformou os parâmetros da linguagem em jogo mental, mas aqui ele reviu o plano da pura especulação científica marienbadiana -como em “Providence” e “Meu Tio da América”, ensaios sobre modos de contar histórias- no zênite da arte aleatória,” tour de force” do cinema da permutação (embora não tão aleatório assim) numa época em que banalizavam trips de videogames.



Os filmes de Resnais tratam os parâmetros da linguagem (os códigos e as convenções da gramática narrativa tais como: plano/contra-campo, corte, som off, panorâmica -foi ele quem disse certa vez: “Um travelling é uma questão de moral”) como elementos autônomos, que valem por si mesmos na estrutura do filme e acionam outros sentidos e contextos além do texto propriamente diegético.



“On Connaît La Chanson” delimita sua operação no musical, gênero do cinema em que os problemas da vida são suspensos para se dançar pisando nos astros distraído. Diz Deleuze: “O musical não se contenta em nos fazer entrar na dança, ou, o que dá no mesmo, em fazer-nos sonhar. O ato cinematográfico consiste em que o próprio dançarino entre em dança, como se entra no sonho”. 



Resnais faz o dublante (o equivalente a cantante) entrar em transe, saindo da diegese sonhada por um processo mental induzido. O filósofo francês conclui: “Se o musical nos apresenta explicitamente tantas cenas funcionando como sonhos ou pseudo-sonhos com metamorfoses, é porque ele inteiro é um gigantesco sonho, mas um sonho implicado, e que ele próprio implica a passagem de uma suposta realidade ao sonho”.



Filmes europeus esquadrinharam o musical da “fábrica de sonho” americana com posturas ora homenageantes ora anti-ilusionistas. Se Demy transpôs o gênero para um sotaque francês sem sobressaltos em “Os Guarda-Chuvas do Amor” (1964), outros diretores transplantaram o modelo para um contexto europeu com certos desvios de norma e rota: Ozon recorreu à trama do filme de suspense e mistério em “Oito Mulheres” (2002) e Lars von Trier criou arestas e texturas ásperas para o melodrama naturalista-metafísico em “Dançando no Escuro” (2000).



Outros foram mais longe ainda na anti-alusão: Godard fragmenta a continuidade num musical neo-realista -“Uma Mulher é Uma Mulher” (1961), e Straub-Huillet perpetram um musical marxista e materialista-dialético -“Crônica de Anna Magdalena Bach” (1967). Isso para não falarmos das óperas operárias de Straub-Huillet, como “Othon” (1969), “Moses e Aron” (1974), “A Morte de Empédocles” (1986). O filme de Resnais participa dessa linhagem, ironizando a fluidez ilusionista com doses de estranhamento e incômodo.



O rigor do diretor surge num arcabouço da memória afetiva: “As canções que usamos são aquelas que vieram para nós naturalmente, através de uma associação de idéias”. Resnais equaliza essa espontaneidade: “Queríamos um grande número de hits (em particular, de modo que o público não pensasse que as canções tinham sido escritas para o filme). Podemos sentir um sucesso mesmo se nunca o ouvimos antes. Não conhecia algumas das canções sugeridas por Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri, mas eu senti que elas eram hits quando as ouvi”.



O conhecido amor de Resnais pelos musicais evitou que o diretor se extraviasse pelo terreno da ilusão típico do gênero: “Um musical quase sempre contém dança ou pelo menos movimentos e gestos que evocam o dançar. Uma vez mais, nós buscamos um estilo mais cotidiano e prosaico. Queríamos que as canções entrassem nas cenas sem qualquer aviso ou alarde. Se os espectadores, mesmo se apenas uma vez ou outra, puderem esquecer que estão ouvindo uma canção e pensarem que aquelas palavras são um diálogo, então eu ficarei feliz”.



Essa “naturalidade” (embora forjada de modo artificial) na intervenção das músicas na diegese é um mecanismo de propulsão para a trama em ciranda (ou quadrilha). Odile Lalande (Sabine Azéma, a senhora Resnais vestida por Christian Lacroix) procura um novo e grande apartamento. Sua jovem irmã, Camille (Agnès Jaoui) é guia turístico por sítios históricos de Paris, enquanto prepara tese de doutorado sobre cavaleiros rudes do ano 1000 num remoto lago francês.



Simon (André Dussollier), que escreve peças de rádio-teatro e se sustenta como corretor de imóveis, acalenta uma paixão oculta por Camille, que, por equívoco, apaixona-se por Marc Duveyrier (Lambert Wilson), agente galante e patrão de Simon na imobiliária, que tenta vender a Odile um apartamento grandioso, porém condenado. 



Claude (Pierre Arditi), o “insignificante” marido da irmã de Camille, tacitamente não aprova a compra e forja outras táticas fora do casamento quando reaparece na vida de Odile um velho amigo dela, o desajustado Nicolas (Jean-Pierre Bacri), que está em vias de se separar de Jane (Jane Birkin), não se dá bem com Camille e se torna confidente de Simon. 



Fiel ao ritmo de ciranda e ao jogo de acasos que tanto preza, Resnais cria pequenos quiproquós, “trompe de fait divers”, engendrando engodos, casos e ciladas (no jogo de ciranda). Odile fica penalizada com um velhinho atropelado, mas lamenta mesmo supor que o neto dele era o rapaz que ela dispensara numa entrevista daquela manhã. Camille, no primeiro encontro (casual) com Marc, enquanto ambos esperavam Odile, suspeita (por ouvi-lo ao telefone e lágrimas de gripe) que ele terminava um caso de amor, gerando a afeição entre os dois.



“On Connaît La Chanson” desconstrói a falsa naturalidade do tempo que pára para alguém cantar. Aqui não se dança, os personagens apenas cantam, ou melhor, dublam -e daí um dos desejos declarados de Resnais: de que os trechos de canções no filme fossem ouvidos como diálogos.



Polifonia de vozes, as falas são feitas vozes de canções, que são justapostas à narrativa como paródia, metacrítica ou comentário distante da ação, no compasso de kitsch e chique, no diapasão da ironia e do lírico. A “música original” de Bruno Fontaine quase se perde na vintena de “músicas não originais” que ocupa a trilha sonora.



Uma das originalidades de “On Connaît La Chanson” é que não há identificação de gênero entre quem canta e quem dubla (com duas únicas exceções -significativamente ou não, no par anagramático Jane/Jean, a de Jane Birkin e a de Jean Aquistapace). Todas as cenas musicais são dubladas, ou seja, o ator ou a atriz não canta o que escutamos, ele ou ela “dobra” a voz de alguém, faz o “play back”, como se cantasse de fato, mas é peça de um jogo que dá voltas.



O contraste entre voz feminina dublada por personagem masculino -e vice-versa- incomoda e desloca. A textura da gravação (ruídos e chiados de disco) acusa a distância de época. Outro distanciamento anti-ilusionista é o tempo curto que dura cada canção (o que também trava o mecanismo de identificação do espectador com o que se passa na tela). São recursos que impedem a “suspension of disbelief” (suspensão da descrença) necessária para entrar na dança do musical.



O filme dá as cartas logo de cara e enuncia as regras do jogo. Sobre os letreiros de apresentação, uma voz feminina no vácuo (sem qualquer som de fundo): “Estão todos aqui? Todos me ouvem?”. Alguns planos depois, saberemos que é Camille guiando o grupo de turistas. Tal fala, enunciada em total silêncio, anuncia o espetáculo anti-ilusionista prestes a começar e ecoa a última frase do filme.



Uma luz artificial de teatro se faz, e uma máscara isola a sigma nazista no palco. Por telefone, o general de Hitler recebe ordens expressar de destruir a cidade. Ao mal-estar com a mensagem do mal, o constrangido ogro encara seus asseclas e (como num fervor idolatrado) passa a dublar a delicada Josephine Baker cantando “J'ai Deux Amours” (Vincent Scotto), declarando seu amor pelo país e por Paris.



Ainda no início do filme, as vozes de Dalida e Alain Delon cantando a manjada “Paroles, Paroles” é outra senha pertinente na abertura de uma peça que brinca com palavras dubladas. Ironia, alusão, desconcerto -Resnais é auto-reflexivo, mas atento ao mundo (o contexto histórico da guerra nos lança na época de muitas das canções mas nos induz à solidariedade afetiva com a cidade-palco). 



“Résiste” -o brado de luta de Odile é France Gall interpretando a canção que seu marido Michel Berger fez para ela em 1982, cujo “single” se tornou “un tube” (como dizem os franceses, ou seja, um hit), e que é usada como tônica dominante, quase em caráter manifesto (auto-ajuda auto-derrisória para os dilemas e levante de estima para o des/ânimo dos personagens). A canção (remixada em 1986 como toada funk pelos arranjos de Prince), assim decupada, explicita seu teor desesperado e desumanizado, com o indefectível refrão -“Résiste, prouve que tu existes!”.



A idéia de fratura (as frases musicais quebradas) chama a noção de passagem: numa mesma sequência Odile dubla uma voz feminina e depois a voz masculina (“é desesperador, mas é preciso ser sincero”); num plano Odile liga o rádio do carro e no plano a seguir Marc passa a dublar a canção que começara no outro espaço (”pequenas misérias que vão passar”); num plano Odile dubla para Camille “que não se importa” (com as mágoas do amor) e no plano seguinte ela desliga a canção que toca no rádio à cabeceira da cama de Claude.



O elemento “ruptura” faz dueto com o elemento “passagem” quando Claude decide dizer a Odile que vai romper o casamento, ligar-se a outra mulher e partir. Em solo, ele se prepara para irromper na festa de inauguração do apartamento dublando em pensamento Serge Gainsbourg (“Je suis venu te dire que je m'en vais”).



Após ensaiar o comunicado, ele encontra Odile chorando (não pela separação que ainda desconhece mas pela descoberta da construção em frente à sua janela) e hesita: “je suis venu” (a frase lacônica é dublada em corte abrupto, refletindo a situação), para daí consolar Odile com um trecho maior da canção.



Dubla-se também por humor. O hipocondríaco Nicolas visita três médicos diferentes enumerando uma lista de males somáticos e falências orgânicas de modo tão exasperado como disparatado, dublando Gaston Ouvrard numa cançoneta cuja composição parece receita de Noel Rosa ou de um Augusto dos Anjos aviado por Lamartine Babo (“Je ne suis pas bien portant”, Vincent Scotto).



Louco de amor calado, Simon projeta-se nos cavaleiros da parada que encanta Camille nas ruas de Paris e remete aos cavaleiros no ano 1000, trajado a caráter e dublando “Vertige de l'Amour”, pop-muzak de Alain Bashung.



Na biblioteca, Simon dubla, vazando vidros e silêncios, Gilbert Bécaud e sua “Nathalie”, canção que fala em “minha guia” e cujo nome rima com Camille. Na festa, acuado pelo olhar hostil de Marc (seu patrão e o ladrão de sua amada), Simon defende-se dublando Johnny Hallyday (“Qu'est ce qu'elle est ma gueule”).



Galante e cínico, o yuppie Marc gosta de dublar pelas ruas dos “quartiers” e cantar garotas na festa com as vias e vozes dos sedutores Jacques Dutronc e Gilbert Bécaud (“J'aime les filles”). Enxotado da festa por ter traído a confiança de Odile com a omissão da construção que bloqueará a vista do apartamento, Marc sai com rompantes de Claude François (“Le Mal Aimé”, versão francesa de Terry Dempsey para “Daydreamer”). Na fossa e no balcão do bar, Marc bebe dublando Pierre Papadiamandis (“Le Blues du Blanc”).



Como não poderia deixar de ser num filme de cirandas amorosas e dançando no eixo da tradição romântica francesa da canção francesa, “homme et femme” fazem par e duo. No apartamento do primeiro encontro, Camille e Marc fazem em duo um jogo de sedução e malícia, dublando os versos dúbios de “Et Le Reste”, com Arletty e Jean Aquistapace.



Na torrente de insinuações, Marc interrompe e pergunta o que ela disse. Disfarçando-se de rogada, Camille vira os olhinhos e volta à cançoneta e suas chacotas maliciosas. 



Outro dueto, mas dublado a voz solo, fazem Simon e Nicolas no banheiro de um dos apartamentos vazios que visitam para alugar. Simon já deixou de ser o corretor de imóveis que leva o cliente Simon para comprar seu lugar. Trocam confidências sobre suas vidas afetivas sem rumo e desarrumadas.



Desolados, caem sentados na borda da banheira e dublam Jane Birkin cantando a dilacerada “Quoi”, de Serge Gainsbourg. Em cena posterior, a intérprete original vai dublar a si mesma com a mesma canção na despedida visceral a Simon na estação de trem.



Em três momentos, uma mesma canção é decupada (escandida) por um largo coro de personagens: enquanto se preparam para a festa Simon, Claude, Marc, Odile, Camille e o pai fazem a toilete em frente ao espelho; na festa, Claude puxa uma corrente para animar Camille com a batida tecno de um hard rock do grupo Téléphone (“C’est Toi”); no final, aos pares -Camille e Simon, Odile e Claude- parecem dublar “Ce n'est rien” de Julien Clerc. 



Como contraponto jocoso à torrente de “cantus interruptus”, Resnais faz os personagens dizerem, em algumas cenas, versos de canções como falas (não frases cantadas). Um exemplo: no restaurante, perto da mesa de Odile e Claude, uma figurante confidencia para a amiga em diálogo não cantado “Non, rien de rien, non, je ne regrette rien”, versos de “Je ne regrette rien” (Charles Dumont e Michel Vaucaire), um dos maiores sucessos de Edith Piaf e um dos símbolos da tradicional “chanson française”.



Ainda no campo do contraponto, Resnais usa ruídos como diálogos ou instâncias dialógicas: o som de carros passando pelo horizonte de tráfego rima com a panorâmica vertical que desce pelas pernas dos nazistas; a britadeira de uma construção em obras próxima ao consultório intromete-se na conversa entre Nicolas e a médica severa.



Nesse filme em que a fala (mesmo que como canto falado) apresenta-se como protagonista, é interessante notar o modo não verbal com que Resnais arma uma cena crucial do clímax dramático (quando Odile ouve a notícia de que a vista do apartamento que acabara de comprar está condenada).



Após vermos e ouvirmos Simon contar a Nicolas, vemos apenas (sem descrição verbal, só ruídos e música) vários planos que mostram o fato consumado e a reação de Odile (imagens do prédio sendo erguido por uma panorâmica vertical que sobe pela fachada, da vista da janela sendo tapada em corte seco, do susto de Odile em flagrante close-up).



Os créditos iniciais, sugerindo um desenho animado em clima de fotonovela (as figuras recortadas e coladas têm corpo desenhado e rosto fotografado), abrem com uma dedicatória a Dennis Potter. Resnais foi um dos primeiros cineastas do chamado “filme de arte” a reconhecer o universo dos “mass media” e das histórias em quadrinhos (é célebre o plano de seu curta “Toda Memória do Mundo” que em travelling pelos corredores da Biblioteca Nacional de Paris detém-se na prateleira com HQs). O Potter (que não é Harry) de Resnais é o verdadeiro mago de “Chanson”, sua chave de segredo.



Potter (1935-1994), um inglês filho de mineiros, estudou em Oxford e editou uma revista subversiva. Foi jornalista, crítico de televisão e político fracassado (do Partido Trabalhista). Vítima de artrite “psoriasis”, escreveu para o teatro antes de se voltar para a televisão.



Num átimo, seu estilo singular se impõe: “mise en dérision” que encena com humor cáustico e imaginação lírica a sociedade britânica. Ligado à BBC e ao Channel Four, Potter roteirizou mais de 30 séries de TV e telefilmes, tendo dirigido apenas duas vezes (os críticos não deixaram jamais de creditar os outros como sendo de sua cepa).



Entre os produtos mais famosos estão “Pennies from Heaven” (1978), “The Singing Detective” (1986) e “Lipstick on your Collar” (1993). Nestas três séries de seis episódios, encontramos o motivo da dedicatória de Resnais: Potter sistematiza um método -personagens realistas entoam canções de época dublando em “play-back” o que gira na “pick up”- de admirável sucesso de crítica e público. Culminando o jogo anti/ilusionismo com um cruel toque de vida, o misantropo Potter aceitou falar televisão sobre o câncer em estado terminal; recebeu a estima de inúmeros admiradores anônimos.



Então onde estaria a novidade de Resnais? Fazendo seus personagens falarem por meio de canções dubladas que expressavam suas vidas interiores e de acordo com a época em que viviam, Potter devassou o delírio irracional das emoções de um modo que filmes convencionais poucas vezes fizeram. Resnais fratura o discurso, nega o tempo da ação, fura o tímpano da verossimilhança, sonega a transparência do espetáculo.



Não apenas o fato de usar canções francesas faz a diferença em “On Connaît La Chanson”. O contraste reiterado entre voz de homem dublada por mulher e voz de mulher dublada por homem, a conjunção abolida entre época da história e gênero musical (mixando registros rachados de music-hall e batida pesada do pop contemporâneo) e o sincronismo entre elementos afastados e defasados são recursos que desafinam o tom corrente.



O arranjo de vozes como num cantochão de polifonia medieval ou melodia de timbres do canto-falado atonal e as frases (musicais) bastante curtas, cortadas abruptamente, antes de consumar-se a expectativa apriorística do espectador-ouvinte (num estranhamento de ritmo que lembra o início de “Muriel” com sua avalanche de tempos de um retorno, curtos planos em aceleração introdutória) são outros arranjos que fazem do estranhamento também divertimento.



Enfim, o uso absolutamente não-naturalista da dublagem musical, que mais perturba do que ilustra, chega ao trítono da insolência com a naturalidade com que todos aqueles recursos e arranjos são dispostos na pauta cotidiana. Se não é um quase-musical, “On Connaît La Chanson” poderia ser uma anti-ópera atonal fraturada em ditos minimalistas.



O próprio Resnais colocou a questão, esclarecendo um original diferencial: “O desafio era como não copiar Potter, dada minha paixão por sua obra. Decidimos usar canções francesas enraizadas num clima cotidiano, excluindo qualquer noção de fantasia. As canções, com duas ou três exceções, não descrevem o mundo imaginário dos personagens. Frequentemente notei que as canções populares acompanham os atos de nossas vidas cotidianas. Se nós nos comportássemos naturalmente, afinal, nós usaríamos letras de canções em nossas conversas”. 



“On Connaît La Chanson” chama a atenção para o que significa a música de fundo em nossa vida. Nesses tempos modernos de últimos românticos, qualquer situação parece pedir uma trilha musical, indicando a identificação afetiva de um momento específico com uma determinada música e sugerindo o modo como sentimentos imediatos podem corresponder a velhas canções arquivadas na memória e sempre prestes a terem seu sulco riscado pela agulha da paixão. 



Mas também nos desperta para a necessidade do silêncio. “Trop de musique, trop de musique” (muita música, muita música), reclamava Webern em 1903. Há um excesso de música em todo canto, um mundo com muita música, demasiados ruídos. As frases musicais sincopadas do filme parecem diagnosticar, antes que o mal-estar, o mal-ouvir de hoje. O cinema insolente do “filósofo da percepção” Alain Resnais pede uma pausa no mundo contemporâneo, tão convulsivo, mas com tão pouca beleza.



Por sua singeleza, propriedade e desconserto, a cena final do filme é de um contido arrebatamento -e não fica nada a dever aos grandes momentos do cinema auto-reflexivo. O último plano do filme encerra a regra do jogo com incerto mistério e certa “nonchalance”.



Um “fade-out” na imagem das roupas dos convivas indica que a festa acabou. Sobram apenas despojos e desejos de algo que se soubesse de fato não seria motivo de comemoração. Inaugura-se um aposento gorado, mas se inauguram novas fases na vida dos personagens, aflorando outros caminhos -eis os jardins dos outros caminhos que se bifurcam aleatórios.



Andando em meio da bagunça habitual dessas ocasiões (a xepa fútil das vaidades), o pai de Odille -em magnífica interpretação de Jean-Paul Roussillon- senta-se no sofá, pega um CD largado ali na mesa, e diz, desapontado: ”Isso me lembra de alguma coisa...”, antes de olhar para a câmera e perguntar para o suposto espectador: “Há alguém aí que conhece esta canção?”.



A indagação, evidentemente apropriada à proposta do filme, remete aos créditos de apresentação (“Estão todos aqui? Todos me ouvem?”) e comenta o verso de uma canção dublada por Simon aos gritos inverossímeis na biblioteca (“Essa canção já ouvi”). Evocando “Marienbad” e a cadeia de citações (internas e externas) que retroagem, os letreiros finais passam horizontalmente pela tela, vindos da direita para a esquerda.



Se a revolução levada a cabo por Resnais no início dos anos 60 fez mais barulho do que sua empreitada 40 anos depois, isso não significa esmorecimento de empenho (falta de fôlego) numa tradição fundada no rigor por ele trilhada, mas que os novos século e milênio ainda não despertaram para as sutilezas perturbadoras de um Resnais “fin-de-siècle”.



No calor da hora de “Marienbad”, o crítico brasileiro José Lino Grünewald (1931-2000) anteviu, sob os dados de Mallarmé, a ”inauguração de uma linguagem” que formulou “a experiência inicial -a técnica do conhecimento”.



Entender o fato novo (seja informação de primeiro grau ou obra de criação) requer tempo e paciência, ensinam a teoria da comunicação e a história da arte. Como diz Nicolas para Camille (e seus intérpretes são justamente os roteiristas de “On Connaît La Chanson”, como também a dizer aos que se interrogam na tela do cinema): “É preciso ser indulgente com os imbecis" (2) . "










Carlos AdrianoÉ mestre em cinema pela USP e realizador dos filmes “A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha” (placa de ouro de melhor documentário no Festival de Chicago) e “Remanescências” (aquisição/coleção The New York Public Library), entre outros.