Antonio Olavo
Por Jorge Alfredo Guimarães
ANTONIO OLAVO - UMA AULA DE CINEMA
Hoje,segunda-feira, dia 8 de junho, ainda às 5 horas da matina, recebo a 3ª resposta de ANTONIO OLAVO às 3 perguntas que lhe fiz. Uma por dia. Sexta, sábado e domingo. Isso começou com a minha insistência que ele assim o fizesse, porque eu estou encantado com o filme dele que assisti na sala do Cinema do Museu, em Salvador, na avant-première.
“1798 - Revolução dos Búzios” já está na sexta semana em cartaz. Quinta feira próxima é dia de mudar a programação nos cinemas e não sabemos se o filme continua ou não em cartaz. Ontem, domingo, na matinê do Cine Glauber Rocha 178 pessoas pagaram ingressos, estavam presentes e, ao final da sessão, aplaudiram de pé essa obra prima do cinema brasileiro.
Eu continuo a ter fé que esse filme vai cumprir seu ideal; ANTONIO OLAVO conseguiu um grande feito com “1798 - Revolução dos Búzios”.
Citando a professora Giselle Beiguelman, seu filme é como se fosse MEMÓRIA DA AMNÉSIA
A ENTREVISTA
- Olavo, eu como também sou um cineasta, sei das dificuldades em se colocar um filme no circuito comercial. Quando eu fui premiado em 2001 no Festival de Brasília, eu não entendia nada sobre esse mundo aí… Reconheço que o cinema nacional com o surgimento da Ancine, em 2002, 2003, encontrou muito apoio pra se lançar no mercado. E a gente recebia passagens e estadia quando éramos selecionados para festivais internacionais, etc. A produção nacional cresceu bastante com os editais, etc… No entanto, se no meu tempo quando nosso filme conseguia entrar no circuito comercial tínhamos pela menos na 1ª semana do lançamento o horário cheio nas salas onde nosso filme estava passando. E, assim, podíamos sentir como o filme estava sendo recebido pelo público alvo. Hoje em dia isso mudou. Me fale dessa sua experiência com “1798 - Revolta dos Búzios”?
- Eu sempre produzi meus filmes, já são 19 documentários sendo 7 longas, e circulei em espaços culturais os mais distintos, inclusive já exibi em várias salas de cinema, na Bahia e em outros estados do Brasil, mas sempre com acesso livre, entrada gratuita. Aceitei a proposta da distribuidora Abará Filmes para colocar no circuito comercial o “1798 Revolta dos Búzios”, pensando principalmente que seria uma oportunidade maravilhosa de ampliar o trabalho que já desenvolvo há muitos anos de tornar nacionalmente conhecido esse movimento de 1798, um tema que pra mim é muito valioso e mobilizador. Então estar com o filme no Circuito Comercial, em 12 capitais do Brasil (Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Belém, Manaus, Recife, Maceió, São Luiz e Aracaju), sem dúvida é algo recompensador. Agora, tenho vivido essa experiência sabendo que é um desafio enorme pois estamos em um mercado dominando por forças poderosas que hegemonizam as salas de cinemas. Veja que o Brasil tem aproximadamente 3.500 salas e há duas semanas, “Divertidamente 2” uma mega produção da Disney,estreou ocupando nada menos que 2.800 delas, ou seja mais de 80% do total, e ainda na terceira semana de exibição se mantém com 2.220 salas. Imagine o que isso significa em termos de bilheteria para uma única produção estrangeira. Isso chega a ser cruel com a cultura de um país, pois é essência de um colonialismo cultural. Isso é ruim até para as grandes produções nacionais e temos o exemplo de “Grande Sertão”, o belo filme de Guel Arraes, que estreou em 360 salas e ao longo das semanas seguintes foi sendo engolido e agora, na 5ª semana, está em 7 salas de cinema. Então se para uma grande produção da Globo Filmes isso é ruim, imagine para as produções independentes como nosso “1798 Revolta dos Búzios”, que estreou há seis semanas em 15 salas e agora está resistindo bravamente em cinco delas, distribuídas em três capitais. Apesar disso tudo, tenho que sobretudo celebrar e comemorar, porque entendo que essas questões são estruturais e não são simples nem fáceis de serem equacionadas. Na Bahia, desde a estreia do nosso filme em 30 de maio, estamos com a 2ª bilheteria e isso sem a grande mídia para divulgar o filme, contando principalmente com o “Correio Nagô”, o poderoso boca-a-boca dos que assistem. E percebo que os exibidores, inclusive aqui na Bahia, poderiam colocar o filme em horários melhores, semana passada teve sessão única no dia às 13h30, horário difícil das pessoas assistirem, já teve também às 21h15, às 22h e é difícil o público chegar nesse horário, pois todos sabemos que são os menos frequentados. Por outro lado, o que mais tem me recompensado são as reações das pessoas com ofilme, que já foi aplaudido após a exibição em várias capitais (RJ, SP, BH, Brasília, Belém, Aracaju....). Em Salvador tem sido recorrente os aplausos e recebo todos os dias dezenas de manifestações de pessoas surpresas e emocionadas com a história. A gerente de um restaurante na Rua da Ajuda me disse que foi a primeira vez que esteve no cinema e vai voltar para assistir novamente, o dono da Banca do Rasta na Rua Chile disse que ficou emocionado em assistir e não sabia que trabalhava a 10 metros onde morava João de Deus, um dos mártires da Revolta, o senhor que vende cafezinho no edifício Braulio Xavier disse que fazia tempo a última vez que esteve no cinema, “...foi na época em que eu era gente.” Enfim.... não são poucos os relatos que recebo de pessoas que se emocionam com essa história encantadora e choram ao final do filme. Então isso é muito e fico eternamente grato.
- Eu fiquei encantado com o jeito que você encontrou pra nos contar essa história, que como diz a música do filme, “o avô não contou pro seu pai e seu pai não lhe contou”. Em que livros de história você se baseou pra escrever o roteiro? Há 13 anos atrás você me presenteou com um calendário de parede lindíssimo, que conta a história do “1798-Revolta dos Búzios”. Guardo esse calendário como se guarda uma obra de arte. Conte essa história pra gente, Olavo, por favor!
- Eu mergulhei muito a fundo na pesquisa para fazer esse filme. Foram 13 anos de trabalho e nesse período lancei o Calendário Revolta dos Búzios, com uma tiragem de 25 mil exemplares que foi distribuída nas escolas públicas e junto aos movimentos sociais. Contudo, considero que foi um tempo necessário para ter um pertencimento e poder fazer um filme com a segurança e serenidade que a encantadora história pedia. A Revolta dos Búzios é um tema complexo, multifacetado e ainda não totalmente conhecido. O filme inclusive fala sobre isso, em vários momentos ele apresenta os diversos “enigmas” que permeiam os acontecimentos e ainda não foram decifrados a contento. Durante séculos, com a impossibilidade do povo negro ter acesso às escolas, sua formação se dava, sobretudo pela oralidade, com os saberes sendo transmitidos de geração a geração, “de pai para filho” como se dizia. O Governo colonial, reprimindo e punindo os conspiradores e ainda declarando eles e seus descendentes como “infames para sempre” promoveu uma cruel política de silenciamento, buscando apagar a memória desse grandioso episódio. Como documentação do processo de 1798 restaram somente os “Autos da Devassa”, texto com mais de 2.000 páginas manuscritas no calor da hora com o desdobramento minucioso da investigação que se procedeu . Os "Autos..." cobrem um período de agosto/1798 a novembro/1799 e são transcrições de dezenas de sessões da Devassa, incluindo a íntegra dos longos depoimentos de mais de 70 pessoas envolvidas na conspiração. Essa documentação é a principal fonte primária sobre o episódio e, além de um documento volumoso e desordenado, é um texto absolutamente parcial, escrito por homens que integravam o aparelho de repressão do Estado colonial, comprometidos a priori com a condenação dos conspiradores. Esse material precisou ser lido e analisado com cuidado e muitas vezes trouxe respostas para questões intrigantes nas entrelinhas e omissões do seu texto. Foi uma documentação lida “a contrapelo”, como diria o filósofo alemão Walter Benjamin. O grande desafio que vivi foi transformar esse farto e complexo escrito em um roteiro cinematográfico que contasse de forma atrativa e dinâmica essa história. É nessa busca que surge a ideia de introduzir, logo na abertura do filme, um rapper apresentando essas indagações ancestrais:
“Que história é essa que meu pai não me contou?
Que história é essa?
Que história é essa?
Meu avõ não contou para o meu pai
E meu pai, também não me contou
Que história é essa?
Que história é essa?”
Fizemos essas filmagens durante uma madrugada pelas ruas do Centro Histórico de Salvador, ruas que foram palco da conspiração de 1798. Então logo após essa espécie de “prólogo” eu começo a narração do filme, que fiz de forma linear, cronológica, sequencial... e ela começa em 12 de agosto de 1798, quando surgem pelas ruas os “papéis revolucionários” e segue numa linha do tempo apresentando os principais fatos até o 8 de novembro de 1799, dia em que ocorre o enforcamento dos quatro mártires na Praça da Piedade, em Salvador.
- eu gostaria que você falasse sobre a equipe técnica e sobre o elenco. Quase nada se falou na imprensa sobre suas sábias opções. A fotografia, a música, os atores… Tudo de primeira grandeza!!!
- O filme captou apenas R$ 300.000 no Edital 2014 do IRDEB, então sob a gestão de José Araripe, mas que teve seu início na gestão anterior de Pola Ribeiro. Pra conseguir levar adiante essa produção, com tão poucos recursos, me restou buscar a cumplicidade de amigos e parceiros e isso encontrei. Na produção com Raimundo Bujão, Josias Santos, Daiane Rosárioe Leda Sacramento, que trabalharam em períodos diferentes; nas filmagens com a Direção de Fotografia de Antonio Luiz Mendes, um dos maiores fotógrafos do Brasil, que infelizmente nos deixou vitimado pela covid na pandemia, ainda sem vacina. Antonio Luiz já era um parceiro antigo, conhecia ele desde 1975 com “D. Flor e seus Dois Maridos” onde foi Assistente de Fotografia e eu Assistente de Produção, depois trabalhamos em 1977 no curta “Diga Ai, Bahia” ele já como Diretor de Fotografia e eu ainda Assistente de Produção. Quando comecei a dirigir meus filmes o chamei para vários: “A Cor do Trabalho” (2014), “Travessias Negras” (2018) e “1798 Revolta dos Búzios”. Conversei muito com ele buscando explicar o clima e a luz que eu queria no filme... as sombras, os detalhes semiocultos, a penumbra, as silhuetas, os planos fechados, os reflexos... enfim tudo que fortalecesse o sentido de algo secreto, clandestino, conspirativo, noturno...gestado nos subterrâneos de uma cidade negra no final do século XVIII. Deveríamos evitar todo e qualquer elemento contemporâneo. Fizemos todas as locações no Centro Histórico de Salvador, palco dos acontecimentos insurgentes de 1798, com as imagens captadas durante a madrugada e ao amanhecer. Também utilizamos bastante imagens subjetivas com detalhes de elementos da cultura negra, criando um jogo de simbologias aderentes. Tudo isso mediado por uma narração em off quase confessional, discreta, “para dentro”, típica das falas proibidas, clandestinas, feita pelo grande ator Rui Manthur. Trabalhamos também com admiráveis atores/atrizes que atuaram como narradores adicionais. Veja que time: Luciana Souza, Valdinéia Soriano, Jorge Washington, Sérgio Laurentino, Fábio Santana, Lázaro Machado, Rui Manthur, Renan Motta, Ridson Reis, Jean Pedro, Edy Firenzza .... aDireção de Arte foi do talentoso Raimundo Laranjeirae utilizamos várias linguagens na busca de contar a história de forma dinâmica, bonita e atraente. Esse episódio ocorrido em 1798, não foi merecedor de uma única peça iconográfica sequer. A fotografia não existia ainda (surge em 1839) e não houve nenhum desenho, nenhuma pintura... então utilizamos ilustrações e animações com cenas cotidianas produzidas por artistas estrangeiros que visitaram a cidade na época e Raimundo foi brilhante nisso.Criamos também ilustrações temáticas alusivas aos personagens e suas ações na conspiração, com base nas descrições registradas nos “Autos da Devassa" e essa criação ficou com Cau Gomez, um grande ilustrador. Utilizamos uma trilha sonora original maravilhosa e envolvente de autoria de Maurício Lourenço. Pedro Garcia fez o Som Direto e Eduardo Ayrosa fez a pós-produção de Áudio. Mas a história que estava sendo contada é muito densa e eu precisava de respiros e por isso busquei intercalar blocos do filme com vinhetas instrumentais executadas por músicos de alto nível como Mário Soares, Ivan Sacerdote, Tota Portela, Teca Gondim...tivemos algumas participações especiais como a de Mateus Aleluia, que declamou o poema “Liberdade e Igualdade”, que é considerado por alguns historiadores como o hino do movimento; outra participação marcante é a do Mestre Cobra Mansa, referência na capoeira do Brasil, com sua voz poderosa no chamamento à cumplicidade dos conspiradores. Já na abertura temos uma grata surpresa com o rapper Diego 157 subindo a Ladeira do Tabuão durante uma madrugada bradando alto“Que história é essa...que história é essa que meu pai não me contou...”. Contamos também com o pessoalda dança, Inah Irenam, Bruno de Jesus e Fred Lopes que fizeram performances de um pertencimento ímpar. Usamos as estampas de Goya Lopes, designer internacional. E ainda três importantes personagens cantando pontos de Candomblé de diferentes nações: Raimundo Konmannanjy (Bantu), Beroso (Jeje Mahi) e Jorjão Bafafé (Ketu). Outro momento forte é a referência a participação das mulheres na conspiração, ilustrada sonoramente com pela bela voz de Jurema Paes, cantando um trecho da linda música de Tiganá Santana. Ressalto que todos os atores/atrizes, bem como os músicos não ganharam nada para participar, fizeram por amor.... então o filme é delas e deles, principalmente. A montagem é de Raimundo Laranjeira, Thiago Lisboae minha. Não posso deixar de citar o final do filme com a grande atriz Valdinéia Soriano, declamando em off, emocionada, um poema manifesto de minha autoria, que transborda as emoções de dois séculos de luta do povo negro do Brasil por uma sociedade justa sem preconceito racial.